Em um cenário em que o excesso de peso na infância cresce inclusive entre pessoas com DM1, uma equipe de pesquisa tcheca testou, de forma controlada, o impacto de uma dieta pobre em carboidratos (LCD) sobre composição corporal e função muscular. O trabalho, publicado no European Journal of Clinical Nutrition, integra um ensaio clínico randomizado com desenho cruzado e busca fornecer dados objetivos — e não apenas percepções subjetivas — sobre efeitos físicos dessa estratégia alimentar em crianças e jovens com DM1.
Objetivo do estudo
Avaliar se um período curto de LCD, rigidamente controlada e isocalórica, altera peso, IMC, percentual de gordura e força/potência muscular em crianças e jovens com DM1, quando comparado a uma dieta com carboidrato nas faixas recomendadas (RCD).
Como o estudo foi conduzido
- Desenho: ensaio clínico randomizado, crossover (cada participante recebeu as duas dietas, em ordem aleatória), com cinco semanas em LCD e cinco semanas em RCD. As refeições eram prontas e entregues em domicílio, reduzindo vieses de adesão e medição de macronutrientes.
- Amostra: 35 participantes (34 completaram), idade média ~14,5 anos; 20 do sexo feminino.
- Composição das dietas:
- LCD: ~95 g/dia de carboidratos (≈15% da energia), com gordura e proteína proporcionalmente maiores.
- RCD: ~191 g/dia de carboidratos (≈35–45% da energia). Ambas foram isocalóricas (diferença média ~40 kJ/dia, sem relevância clínica).
- Desfechos: peso, IMC e circunferências; percentual de gordura por bioimpedância (subamostra de 15); força e potência muscular por mecanografia de salto (plataforma Leonardo).
- Análise: comparação entre fins dos períodos (LCD vs. RCD) usando testes t de Welch e escores padronizados por idade/sexo/estatura.
Principais achados (5 semanas)
Composição corporal
- Peso corporal: 61,7 kg (LCD) vs. 62,6 kg (RCD) — diferença média −0,94 kg, p<0,001.
- IMC: 22,3 vs. 22,7 kg/m² — diferença −0,36 kg/m², p<0,001.
- Circunferências: cintura, braço e panturrilha menores ao fim da LCD (todas com significância estatística).
- Gordura corporal (bioimpedância, n=15): 24,5% (LCD) vs. 25,3% (RCD) — diferença −0,79 ponto percentual, p=0,001.
Função muscular
- Potência máxima e força máxima: sem redução com LCD; medidas globais não diferiram de modo significativo entre períodos. Houve pequena superioridade em um parâmetro relativo (força/peso na perna direita) a favor da LCD.
Classificação por IMC
- Houve tendência de leve deslocamento para categorias de menor IMC na LCD, sem significância estatística para mudança de categorias.
O que isso significa na prática clínica
A equipe conclui que uma LCD de curto prazo, isocalórica e supervisionada pode reduzir peso, IMC e percentual de gordura em crianças e jovens com DM1 sem prejudicar a força muscular. Em um contexto de DM1 pediátrico, no qual o excesso de peso é um fator de risco cardiometabólico relevante e as opções farmacológicas adjuvantes são limitadas, esse resultado sinaliza potencial utilidade da LCD como ferramenta temporária para manejo de adiposidade — quando bem planejada e acompanhada.
Importante: o estudo reforça que não avaliou dietas cetogênicas estritas (muito abaixo de 10% de energia em carboidratos) e não sustenta extrapolações para cenários de restrição mais severa, nos quais já existem relatos de efeitos adversos de crescimento e sintomas como fadiga. As 5 semanas de intervenção também não permitem conclusões sobre crescimento linear ou sustentabilidade de efeitos a longo prazo.
Forças do estudo
- Desenho crossover com cada participante atuando como seu próprio controle.
- Padronização rigorosa da alimentação (caixas de refeições prontas), reduzindo variação de macro/energia e melhorando a aderência.
- Mensuração objetiva de função muscular por mecanografia (Fmax/Pmax, absoluto e relativo).
Limitações e cautelas
- Duração curta (5 semanas): não permite avaliar crescimento, manutenção do efeito ou desfechos cardiometabólicos duros.
- Bioimpedância em subamostra (n=15): apesar de o resultado ter sido significativo, o método é influenciado por hidratação/atividade prévia (mitigado por jejum e manhã). DXA seria o padrão-ouro, embora a literatura reporte alta correlação com o InBody 770 citado.
- Adesão autorrelatada: os autores apontam indícios de boa adesão (ex.: redução de dose de insulina no período LCD, descrita em publicação relacionada do mesmo ensaio).
Como interpretar à luz de diretrizes
O artigo relembra que ISPAD (2022) recomenda 40–50% da energia de carboidratos para crianças e adolescentes com DM, e que dietas muito baixas em carboidratos (ex.: cetogênicas) têm sido associadas a riscos específicos (resposta ao glucagon, lipídios, crescimento). A presente LCD (~15% da energia) foi planejada, isocalórica, monitorada e de curta duração; portanto, seus achados não substituem recomendações vigentes, mas informam a discussão clínica sobre estratégias temporárias de redução de adiposidade sob supervisão.
Para quem serve — e em que condições
- Candidatos: crianças e jovens com DM1 e excesso de adiposidade, acompanhados por equipe multiprofissional, com educação terapêutica adequada, monitorização de glicose (idealmente CGM/isCGM) e ajustes de insulina.
- Condições necessárias: prescrição nutricional individualizada, isocalórica (evitando déficit energético inadvertido), metas claras, prevenção de hipoglicemia e reavaliação periódica para evitar riscos potenciais ao crescimento/desenvolvimento.
O que ainda falta saber
- Longo prazo: manutenção da perda de gordura, impacto em HbA1c, lipídios, eventos hipoglicêmicos e crescimento linear.
- Faixas de carboidrato: qual o limiar de redução que equilibra benefício em adiposidade sem comprometer segurança pediátrica?
- Perfis de pacientes: quem mais se beneficia (por idade, estágio puberal, padrão de atividade física, perfil de dose de insulina)?
Mensagem prática
Em 5 semanas, uma LCD isocalórica e supervisionada reduziu peso, IMC e percentual de gordura em crianças e jovens com DM1 sem perda de força muscular. Esses dados sustentam a possibilidade de empregar uma LCD por tempo limitado, como ferramenta de redução de adiposidade, desde que planejada, monitorada e alinhada às metas clínicas, sem extrapolar para protocolos mais restritivos ou de longa duração sem evidência. Decisões devem ser compartilhadas entre equipe, família e paciente, com acompanhamento próximo e foco em segurança.
