Boca saudável, corpo saudável: as cáries dentárias são o prenúncio da doença metabólica?


Este artigo apresenta a ideia de que a cárie dentária não é apenas um problema “local” da boca. Em vez disso, descreve a cárie como um marcador inicial — e facilmente visível — de disfunções metabólicas sistêmicas relacionadas ao padrão alimentar moderno, especialmente ao consumo frequente de carboidratos refinados. A proposta é simples: observar a saúde bucal pode antecipar riscos de DCNT (doenças crônicas não transmissíveis) ao longo da vida, e a prevenção eficaz deve incluir estratégias metabólicas e dietéticas, não apenas higiene oral.

Por que olhar para os dentes para entender o metabolismo?

  • A cárie é a condição crônica mais prevalente do mundo, afetando bilhões de pessoas de todas as idades. Em modelagens de redes complexas de DCNT, a cárie surge como o que mais coocorre com outras doenças, com conexões que aumentam e se diversificam com a idade (J Dent Res 2025).
  • A literatura em saúde pública segue focada em “alvos” isolados (micro-organismos, glicose, lipídios, proteínas anormais), mas as taxas de DCNT continuam altas. O texto argumenta que função mitocondrial alterada, hiperinsulinemia compensatória e inflamação sistêmica — frequentemente acionadas por dieta — estão no centro desses quadros.

Do “gérmen” ao “terreno”: o que muda?

Historicamente, a teoria do “gérmen” ajudou a criar estratégias sanitárias decisivas (esterilização, vacinas, higiene). Com o tempo, esse raciocínio foi extrapolado para DCNT, priorizando o combate a “alvos” (bactérias, lipídios, glicose), como se bastasse “eliminar” o agente para resolver o problema. O artigo revisita a noção de “terreno” (o hospedeiro e seu estado metabólico), propondo que o padrão alimentar ultraprocessado, rico em carboidratos refinados e com muita frequência de ingestão, desregula a bioenergética celular, antecedendo a cárie e outras doenças.

Da boca para o corpo: dois processos que caminham juntos

1) Processo “local” na boca

Bactérias orais fermentam carboidratos, gerando ácidos que desmineralizam o esmalte. Se o pH cai para faixas críticas (~5,0–5,5), inicia-se a perda mineral; saliva (com cálcio, fosfato e flúor) pode reverter fases iniciais, mas exposições frequentes a açúcares favorecem a progressão para cavidades (Microbiol Rev 1986; Infect Immun 1975).

2) Processo “sistêmico” metabólico

Comer muitas vezes ao dia e com alto teor de refinados mantém o organismo em estado pós-prandial prolongado, com hiperglicemia intermitente, aumento de AGEs, e sobrecarga mitocondrial (excesso de NADH/FADH₂). Quando a cadeia respiratória não dá vazão, cresce o estresse oxidativo; para compensar, o corpo eleva a insulina (hiperinsulinemia) e progride para resistência insulínica. Em paralelo, alterações no eixo hipotálamo–parótida reduzem a secreção hormonal parotídea e invertem o fluxo dentinário, “desnutrindo” o dente por dentro. Resultado: dentes mais vulneráveis e ambiente sistêmico mais inflamatório.

Em síntese, a cárie é explicada como resposta dupla:
(a) ácidos locais de bactérias + (b) disfunções hormonais/metabólicas induzidas pela dieta, que comprometem a saliva, o fluxo dentinário e a imunidade oral.

Evidências históricas e antropológicas

  • Em sociedades pré-neolíticas, a cárie e a doença periodontal eram raras. Com a transição para dietas baseadas em cereais e, mais tarde, alimentos industrializados, houve aumento do cálculo dental (placa calcificada), mudanças do microbioma oral e mais cáries (Nat Genet 2013).
  • Dados históricos do período da Segunda Guerra Mundial sugerem que oscilações no suprimento de carboidratos refinados acompanharam quedas e aumentos tanto de doenças orais quanto de crônicas (p.ex., redução de mortalidade por diabetes em mulheres inglesas e de cáries em escolares britânicos quando o acesso a refinados diminuiu).

Vitaminas, minerais e imunidade oral

O texto relaciona insuficiências de vitaminas A, D, K₂ e minerais (cálcio, ferro, zinco, selênio) a alterações do desenvolvimento do esmalte/dentina, redução de peptídeos antimicrobianos (como catelicidinas/defensinas) e pior controle inflamatório — com destaque para vitamina D, associada a cárie em crianças e periodontite (J Dent Child 2016). Embora os mecanismos ainda exijam estudos prospectivos robustos, a direção é consistente: qualidade nutricional melhora a imunidade bucal e a integridade do tecido dental.

Por que “escovar mais” não basta (embora ajude)

A prevenção tradicional prioriza dispositivos e produtos (escova, fio, antissépticos, flúor). Esses recursos têm papel, mas a literatura sobre intervenções não dietéticas mostra grande heterogeneidade metodológica e eficácia limitada a longo prazo. Mais grave: diretrizes históricas que reduziram gordura e estimularam mais porções de carboidratos deslocaram o foco da restrição de carboidratos refinados — exatamente o principal fator alimentar relacionado à cárie (Gerodontology 2018; Gerodontology 2019).

O que muda na prática? (prevenção dietética)

  1. Reduzir a frequência de ingestão: intervalos maiores entre as refeições favorecem pH bucal mais estável e menor estímulo à hiperinsulinemia.
  2. Restringir carboidratos refinados (açúcares livres, farinhas, UPF): menor substrato fermentável para bactérias e menor sobrecarga mitocondrial sistêmica.
  3. Priorizar densidade nutricional (alimentos ricos em vitaminas A, D, K₂ e minerais): suporte ao desenvolvimento e à defesa do dente e da mucosa.
  4. Valorizar lácteos integrais de boa qualidade, conforme evidências associando produtos lácteos à redução de risco de síndrome metabólica (Adv Nutr 2019) e achados favoráveis à saúde dental em revisões anteriores (Eur J Oral Sci 2020).
  5. Ensaios clínicos e programas de cuidado remoto com terapia nutricional com restrição de carboidratos, inclusive em DM2, mostram manutenção de benefícios por vários anos (Diabetes Res Clin Pract 2024). Embora esses estudos não tenham sido desenhados para cárie, reforçam a coerência metabólica da abordagem.

Implicações de saúde pública

  • Se a cárie aparece cedo na vida e compartilha os mesmos fatores de risco das DCNT, ela pode funcionar como “sinal amarelo” para intervenção alimentar o quanto antes.
  • Políticas que mantenham o foco apenas em higiene e flúor ignoram a fisiopatologia sistêmica descrita e tendem a produzir ganhos limitados.
  • A integração de estratégias metabólicas (p. ex., reduzir a exposição repetida a carboidratos fermentáveis e aumentar densidade nutricional) deve ser prioridade em programas de prevenção e tratamento.

Conclusão

A mensagem central é direta: cárie dentária reflete o estado metabólico do organismo. Na presença de refeições muito frequentes e de carboidratos refinados, instala-se um ciclo de acidificação local e disfunção sistêmica (estresse oxidativo, hiperinsulinemia, ejeção hormonal alterada no eixo hipotálamo–parótida, fluxo dentinário comprometido). Assim, a cárie deve ser encarada como doença metabólica — e marcador precoce de risco para outras DCNT. Prevenir cárie, portanto, significa tratar o metabolismo: reduzir refinados, comer com menos frequência e priorizar alimentos nutricionalmente densos.

Referências


Fonte: https://doi.org/10.4102/jmh.v8i1.121

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