Na cultura popular brasileira, especialmente em regiões do Nordeste, é comum ouvir que certos alimentos — como carne de porco, frutos do mar ou ovos — seriam “remosos”, isto é, capazes de atrapalhar a cicatrização, aumentar inflamações ou causar problemas de pele. Essa ideia é antiga, transmitida de geração em geração, mas não tem base na ciência moderna.
O que significa “remoso”?
No uso popular, “remoso” é um rótulo dado a comidas consideradas “fortes” ou “pesadas”. O receio é de que esses alimentos “remexam o sangue” ou “abram pontos” em alguém que está se recuperando de uma cirurgia ou machucado. Também se fala que poderiam piorar espinhas, coceiras ou erupções cutâneas.
Essa explicação soa convincente em uma conversa do dia a dia, mas quando olhamos para o que a ciência de qualidade realmente mostra sobre alimentação, vemos que não existe nenhuma categoria de alimento que aja dessa forma.
O que a ciência sabe sobre cicatrização?
O processo de cicatrização é complexo e depende de vários fatores que vão muito além de evitar ou incluir um alimento específico. Entre os pontos principais estão:
- Proteínas: fundamentais para a formação de novos tecidos.
- Vitaminas e minerais: vitamina C, zinco, ferro e cobre são cruciais para a regeneração da pele.
- Energia suficiente: sem calorias adequadas, o corpo não consegue sustentar o processo de reparo.
- Hidratação: indispensável para o transporte de nutrientes e manutenção da resposta imunológica.
Os alimentos frequentemente chamados de “remosos” são, na realidade, fontes importantes desses nutrientes:
- Carnes: fornecem proteínas de alto valor biológico, ferro heme (melhor absorvido) e zinco, todos cruciais para cicatrização.
- Ovos: ricos em vitaminas do complexo B, colina e gorduras essenciais, além de proteínas completas.
- Peixes e frutos do mar: excelentes fontes de ácidos graxos ômega-3, que têm efeito anti-inflamatório reconhecido.
Estudos de qualidade confirmam esses pontos:
- A ingestão adequada de proteínas acelera a cicatrização e reduz complicações em feridas cirúrgicas (Demling, 2009).
- O zinco é um cofator essencial em mais de 300 reações enzimáticas e tem papel direto na cicatrização (Lansdown et al., 2007).
- Os ácidos graxos ômega-3 provenientes de peixes ajudam a modular a inflamação, favorecendo reparo tecidual (Calder, 2015).
Portanto, se a lógica fosse científica, esses alimentos ajudariam a cicatrizar, e não o contrário.
O que realmente pode atrapalhar a cicatrização?
Se há algo que de fato prejudica a recuperação de feridas e aumenta a inflamação no corpo, não são os alimentos de origem animal, mas sim:
- Excesso de açúcares e carboidratos refinados: eles elevam a glicemia, comprometem a função dos glóbulos brancos e atrapalham a resposta do sistema imunológico (Guo & DiPietro, 2010).
- Óleos vegetais refinados: ricos em ômega-6 em excesso, favorecem processos inflamatórios quando o equilíbrio com ômega-3 é perdido (Simopoulos, 2002).
- Deficiência de proteínas e micronutrientes: comum em dietas modernas baseadas em ultraprocessados, pobres em densidade nutricional.
Esses fatores, sim, têm respaldo científico e explicam por que muitos pacientes apresentam cicatrização mais lenta ou complicações em feridas.
De onde vem o mito do “remoso”?
A crença provavelmente nasceu de três situações:
- Alergias verdadeiras: frutos do mar podem causar reações alérgicas intensas em pessoas predispostas. Quem passou por isso pode ter associado a reação a uma piora da inflamação.
- Intolerâncias individuais: algumas pessoas sentem desconforto digestivo com ovos ou carne suína, o que pode ser interpretado como “alimento pesado”.
- Coincidências: uma espinha ou coceira que apareça após consumir determinado alimento reforça a crença, mesmo sem relação real entre as duas coisas.
Com o tempo, esses relatos foram transmitidos como regra geral, até se consolidarem como tradição.
Por que a crença persiste?
O conceito de “remoso” continua vivo porque é simples, fácil de transmitir e reforça uma sensação de cuidado. Em comunidades onde a medicina científica não era amplamente acessível, recorrer a explicações populares ajudava a criar normas de proteção.
No entanto, do ponto de vista nutricional, evitar justamente alimentos ricos em proteínas e micronutrientes pode ser prejudicial em períodos críticos, como o pós-operatório.
Conclusão
A ideia de “alimento remoso” não encontra respaldo em evidências científicas de qualidade.
- Não existe mecanismo fisiológico que explique como carne, ovos ou frutos do mar poderiam atrapalhar a cicatrização.
- Pelo contrário: esses alimentos são ricos em proteínas, vitaminas e minerais que favorecem o reparo dos tecidos e fortalecem o sistema imunológico.
- O mito provavelmente nasceu de casos isolados de alergia ou intolerância, generalizados ao longo do tempo.
Assim, classificar alimentos como “remosos” não faz sentido científico. A melhor forma de apoiar a saúde é priorizar uma dieta nutritiva, com destaque para alimentos de origem animal, que comprovadamente fornecem os elementos necessários para recuperação e manutenção do organismo.
Referências
- Demling RH. Nutrition, anabolism, and the wound healing process: an overview. Eplasty. 2009;9:e9. Disponível em: PubMed
- Lansdown ABG, Mirastschijski U, Stubbs N, Scanlon E, Ågren MS. Zinc in wound healing: theoretical, experimental, and clinical aspects. Wound Repair Regen. 2007 Jan-Feb;15(1):2-16. DOI: 10.1111/j.1524-475X.2006.00179.x
- Calder PC. Marine omega-3 fatty acids and inflammatory processes: Effects, mechanisms and clinical relevance. Biochim Biophys Acta. 2015 Apr;1851(4):469-84. DOI: 10.1016/j.bbalip.2014.08.010
- Guo S, Dipietro LA. Factors affecting wound healing. J Dent Res. 2010 Mar;89(3):219-29. DOI: 10.1177/0022034509359125
- Simopoulos AP. The importance of the ratio of omega-6/omega-3 essential fatty acids. Biomed Pharmacother. 2002;56(8):365-79. DOI: 10.1016/S0753-3322(02)00253-6
