Transtornos alimentares do tipo compulsão e dependência de ultraprocessados: fenômeno, mecanismos e implicações terapêuticas


O artigo publicado na Frontiers in Psychiatry em 2025 por Joan Ifland e Timothy Brewerton apresenta uma análise detalhada da relação entre transtornos alimentares caracterizados por compulsão (binge-type eating disorders, EDs) e a chamada adição a alimentos ultraprocessados (ultra-processed food addiction, UPFA).

O ponto central é a constatação de que ambos os quadros compartilham um mesmo núcleo: a perda de controle sobre a ingestão alimentar (loss of control binge eating – LCBE). Essa perda de controle é observada no transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP), na bulimia nervosa e na anorexia nervosa do tipo purgativo, e também é a característica definidora da dependência de ultraprocessados.

Sobreposição entre compulsão alimentar e dependência de ultraprocessados

O estudo evidencia que, em termos clínicos e neurobiológicos, há forte sobreposição entre os dois diagnósticos:

  • Alterações nos circuitos de recompensa: pacientes com compulsão apresentam hiperatividade nos sistemas dopaminérgicos, opioides e canabinoides, semelhantes aos observados em dependentes de álcool e drogas.
  • Déficits cognitivos: são frequentes problemas de atenção, tomada de decisão e controle inibitório, também compatíveis com perfis de dependência química.
  • Reatividade ao estresse: o estresse crônico atua como gatilho tanto para recaídas em dependências de substâncias quanto para episódios de compulsão alimentar, reforçando a ligação entre trauma, ansiedade e alimentação descontrolada.

Além disso, estudos demonstram que os episódios de compulsão recaem quase sempre sobre alimentos ultraprocessados – ricos em açúcares, farinhas refinadas, gorduras industriais, aditivos e combinações que estimulam fortemente o sistema de recompensa cerebral.

Limitações dos tratamentos atuais

Apesar dessa semelhança com outros transtornos por uso de substâncias (SUDs), a abordagem clínica tradicional dos transtornos alimentares não incorpora protocolos de redução de danos ou abstinência alimentar específica, práticas consagradas no tratamento de dependência de álcool e drogas.

O modelo dominante ainda se apoia no princípio do “all foods fit” (todos os alimentos cabem), defendendo que qualquer comida pode ser consumida em moderação. Segundo os autores, essa abordagem ignora as evidências de que a moderação não é viável para substâncias com alto potencial aditivo, como açúcares refinados ou ultraprocessados em geral, e pode comprometer a recuperação de muitos pacientes.

Implicações terapêuticas

O artigo sugere que resultados mais consistentes poderiam ser alcançados se o manejo dos transtornos de compulsão alimentar adotasse estratégias semelhantes às usadas em dependências químicas:

  1. Redução de danos: diminuição progressiva do consumo de ultraprocessados, com foco em reduzir recaídas e complicações.
  2. Abstinência: eliminação completa de alimentos com propriedades psicoativas e aditivas, quando indicado, acompanhada de suporte intensivo para evitar recaídas.
  3. Nível elevado de suporte: como ocorre no tratamento de dependências severas, pode ser necessário acompanhamento multidisciplinar, apoio em grupos de 12 passos (como Overeaters Anonymous) e programas estruturados de reabilitação alimentar.

Segundo os autores, a resistência do campo dos transtornos alimentares em adotar a abstinência de ultraprocessados pode estar ligada a fatores culturais, econômicos (pressão da indústria de alimentos) e a dificuldades práticas em estruturar planos nutricionais individualizados.

Conclusão

O trabalho conclui que os transtornos alimentares do tipo compulsão devem ser entendidos, em grande parte, como manifestações de dependência a alimentos ultraprocessados. A manutenção de abordagens baseadas em “moderação” e inclusão irrestrita desses alimentos nos planos alimentares pode estar relacionada às baixas taxas de sucesso terapêutico observadas até hoje.

Portanto, a integração de protocolos de abstinência ou redução de ultraprocessados pode abrir novas possibilidades para melhorar a recuperação de pacientes que sofrem com compulsão alimentar recorrente, trazendo o campo dos transtornos alimentares para mais perto do manejo consolidado de outras dependências.

Fonte: https://doi.org/10.3389/fpsyt.2025.1584891

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