Nos últimos anos, um conceito emergente vem ganhando espaço na pesquisa biomédica: a saúde intrínseca. Essa ideia, descrita por pesquisadores como Alan A. Cohen e Martin Picard, da Universidade de Columbia, propõe que a saúde deve ser entendida como um estado biológico mensurável e distinto, e não apenas como a ausência de doença detectável nos exames convencionais.
Segundo os autores, a saúde intrínseca é um “estado semelhante a um campo”, ou seja, uma propriedade emergente que resulta da interação harmoniosa de diversos sistemas corporais — desde a sinalização molecular dentro das células até a comunicação entre órgãos inteiros. Essa harmonia depende do fluxo eficiente de energia (em grande parte mediado pelas mitocôndrias) e da comunicação constante entre sistemas como o imunológico, nervoso, cardiovascular, muscular e metabólico. Quando essa rede integrada funciona de maneira estável, o corpo mantém o que eles chamam de equilíbrio dinâmico, capaz de se adaptar rapidamente a desafios como infecções, toxinas, mudanças de temperatura ou estresse físico.
Para ilustrar, os pesquisadores comparam o organismo a um equilibrista sobre uma corda bamba: manter-se em pé exige ajustes contínuos, rápidos e perfeitamente coordenados. Da mesma forma, manter a saúde ideal requer que todos os sistemas corporais reajam de forma integrada e eficiente às mudanças constantes do ambiente interno e externo. Quando essa coordenação falha, surgem condições crônicas como câncer, doenças cardíacas, Alzheimer ou fadiga persistente.
O grupo de Cohen investiga esse equilíbrio analisando grandes bancos de dados clínicos, detectando padrões que indicam desregulação homeostática — um desequilíbrio nas redes que controlam a inflamação, o metabolismo e outros processos regulatórios. Já a equipe de Picard foca nas mitocôndrias, demonstrando que elas não apenas produzem energia, mas também participam ativamente da comunicação celular e sistêmica. Segundo suas pesquisas, quando as mitocôndrias perdem eficiência, ocorre uma quebra no diálogo entre os sistemas do corpo, enfraquecendo a capacidade adaptativa e aumentando o risco de doenças.
Outro ponto destacado é o impacto de fatores de vida sobre essa resiliência fisiológica. Experiências adversas na infância, pobreza, má alimentação, tabagismo e estresse psicológico crônico podem reduzir de forma significativa a capacidade do organismo de se autorregular. Picard ressalta que, nesses casos, o comprometimento da função mitocondrial pode afetar diretamente a comunicação intracelular e entre órgãos, prejudicando inclusive a conexão cérebro-corpo — o que ajuda a explicar por que distúrbios como depressão e ansiedade frequentemente coexistem com outras doenças físicas.
O Desafio de Aplicar Esse Conceito à Dieta Carnívora
Quando trazemos a ideia de saúde intrínseca para o contexto da dieta carnívora, surge uma questão crítica: os exames laboratoriais e faixas de referência usados na medicina atual não foram desenvolvidos com base em populações que seguem esse padrão alimentar.
Toda a base estatística que define o que é “normal” nos resultados de exames foi construída a partir de estudos com indivíduos que consomem dietas tradicionais — tipicamente ricas em carboidratos refinados, óleos vegetais poli-insaturados e alimentos ultraprocessados. Esse perfil dietético promove um metabolismo predominantemente glicolítico e altera diversos parâmetros bioquímicos de forma diferente de um metabolismo cetogênico sustentado, que é característico da dieta carnívora.
Isso significa que marcadores como colesterol LDL, triglicerídeos, glicemia de jejum, creatinina e até enzimas hepáticas podem apresentar valores fora das “faixas normais” em carnívoros, sem que isso represente um risco real. Por exemplo:
- LDL elevado: em contexto de cetose estável, triglicerídeos baixos e ausência de inflamação sistêmica, não apresenta o mesmo significado que em indivíduos com dieta rica em carboidratos e inflamação crônica.
- Glicemia mais baixa que a média: pode refletir estabilidade glicêmica e uso predominante de gordura como combustível, e não hipoglicemia patológica.
- Creatinina ligeiramente alta: pode estar associada a maior massa muscular ou maior consumo de proteína, e não a disfunção renal.
Portanto, não existem exames de rotina com credibilidade para medir de forma direta e confiável a saúde de quem segue a dieta carnívora, justamente porque as referências foram feitas para perfis metabólicos completamente diferentes.
Check-ups: Essenciais, mas com Interpretação Contextual
É fundamental ressaltar que fazer check-ups regulares continua sendo indispensável. Exames laboratoriais, avaliações físicas e acompanhamento médico são ferramentas essenciais para monitorar a saúde a longo prazo. Porém, a interpretação desses resultados não pode se limitar a comparar números com faixas de referência criadas para outra realidade metabólica.
Avaliar um indivíduo em dieta carnívora exige considerar:
- O contexto alimentar — uso predominante de gordura como combustível, ausência de carboidratos refinados e óleos vegetais, presença de cetose nutricional.
- Histórico clínico e sinais subjetivos — energia, qualidade do sono, estabilidade emocional, desempenho físico e ausência de sintomas.
- Marcadores inflamatórios e funcionais — priorizando exames que avaliem inflamação sistêmica, função hormonal e capacidade adaptativa, e não apenas indicadores isolados.
Tratar apenas “números” sem considerar o contexto pode levar à medicalização desnecessária e até prejudicar indivíduos metabolicamente saudáveis.
Caminho Futuro: Medindo a Saúde Real
O trabalho de Cohen e Picard aponta para um futuro em que será possível monitorar a saúde intrínseca por meio de exames simples, talvez até com dispositivos vestíveis, oferecendo uma visão clara e personalizada da resiliência do organismo. Quando adaptada a diferentes perfis metabólicos — incluindo o da dieta carnívora — essa abordagem poderá finalmente fornecer métricas objetivas para medir a vitalidade real, muito antes de qualquer sinal de doença.
Até lá, para quem segue a dieta carnívora, a regra é clara: check-ups sim, mas sempre interpretados dentro do contexto, levando em conta tanto marcadores objetivos quanto a percepção subjetiva de bem-estar, para que a avaliação da saúde seja fiel à realidade do indivíduo e não refém de padrões laboratoriais criados para populações metabolicamente diferentes.
Fonte: https://magazine.columbia.edu/article/secret-science-behind-feeling-great
