Os riscos da dieta carnívora


A dieta carnívora vem despertando grande interesse nos últimos anos, especialmente em pessoas com doenças metabólicas, autoimunes e até distúrbios psiquiátricos. No entanto, artigos jornalísticos e posicionamentos de algumas entidades costumam abordá-la de forma reducionista, enfatizando riscos teóricos e generalizações.

O texto crítico que será analisado faz uma série de afirmações categóricas contra a dieta carnívora. A seguir, cada uma dessas frases será retirada literalmente e, em seguida, refutada com base em evidências científicas recentes, registros históricos de populações que consumiam predominantemente carne e relatos clínicos documentados. O objetivo é construir uma análise robusta e contextualizada, sem apelos simplistas.

1. Gordura saturada e risco cardiovascular

“Há evidências suficientes de que o aumento do consumo de gordura saturada … contribui para a elevação dos níveis de colesterol e, consequentemente, para o risco de obstruções nos vasos sanguíneos.”

Essa afirmação deriva de uma hipótese da década de 1950, conhecida como “hipótese lipídica”, que sugeria ligação direta entre gordura saturada, colesterol sérico e doença cardiovascular. Contudo, revisões recentes de alta qualidade metodológica não confirmam essa relação causal de forma consistente.

Estudos de randomização mendeliana, que utilizam variações genéticas como modelo de estudo, não encontraram associação direta entre níveis elevados de ácidos graxos saturados e risco de acidente vascular cerebral. Uma metanálise publicada no American Journal of Clinical Nutrition (2010) avaliou 21 estudos prospectivos envolvendo 347.747 participantes e concluiu que não há evidências significativas de que a gordura saturada aumente o risco de doença coronariana ou AVC.

Além disso, em protocolos clínicos que aplicam dietas de baixo carboidrato e alto teor de gordura, como a Paleolithic Ketogenic Diet (PKD), observa-se melhora nos triglicerídeos, aumento do HDL, redução de marcadores inflamatórios e estabilização glicêmica — todos fatores que reduzem risco cardiovascular. A narrativa simplista que liga gordura saturada a obstrução vascular não encontra respaldo sólido nos dados atuais.

2. Fibras alimentares e saúde intestinal

“As fibras, por sua vez, têm benefícios amplamente comprovados, como auxiliar no bom funcionamento do intestino, contribuir para a microbiota intestinal e diminuir o risco de câncer de intestino.”

De fato, fibras têm efeitos benéficos em muitos contextos dietéticos. No entanto, afirmar que sua ausência resulta em prejuízo inevitável ignora nuances importantes. Um estudo publicado no World Journal of Gastroenterology (2012) mostrou que a remoção de fibras em pacientes com constipação crônica levou à melhora significativa dos sintomas, indicando que, em alguns casos, fibras podem agravar distúrbios gastrointestinais.

Relatos de indivíduos em dieta carnívora documentam evacuações regulares e ausência de sintomas gastrointestinais mesmo sem ingestão de fibras vegetais. A microbiota intestinal, embora modulada por fibras fermentáveis, também responde a proteínas e gorduras animais, gerando ácidos graxos de cadeia curta por vias alternativas.

Em dietas com baixos carboidratos, a produção de butirato — geralmente atribuída às fibras — pode ocorrer a partir da beta-oxidação de ácidos graxos. Assim, o argumento de que fibras são insubstituíveis não se sustenta em todos os contextos.

3. Deficiências nutricionais e ausência de antioxidantes

“As carnes não fornecem vitamina C significativa, os compostos antioxidantes fenólicos são inexistentes nesses alimentos, e, portanto, não substituem vegetais.”

Essa crítica ignora dois pontos fundamentais: (1) a biodisponibilidade de nutrientes em alimentos de origem animal e (2) a menor necessidade de vitamina C em contextos de baixo consumo de glicose.

O fígado, os rins e as glândulas suprarrenais de animais contêm vitamina C, ainda que em menor quantidade que frutas cítricas. Mas em dietas com baixo teor de carboidratos, a competição entre glicose e vitamina C para transporte celular é reduzida, tornando menores doses eficazes. Foi o que se observou em exploradores do Ártico, como Vilhjalmur Stefansson, que viveu anos consumindo apenas carne e não desenvolveu escorbuto.

Além disso, compostos antioxidantes não se limitam a fenólicos vegetais. Carnes e órgãos fornecem carnosina, taurina, ubiquinona e glutationa — moléculas com potente ação antioxidante intracelular, que atuam de forma diferente, mas eficaz, na neutralização de radicais livres.

4. Sobrecarga renal e risco de cálculos

“O excesso de proteína animal pode prejudicar os rins, favorecendo cálculos renais e aumentando o risco de gota.”

Estudos em indivíduos saudáveis não demonstram associação entre alto consumo de proteína animal e doença renal. Uma revisão no Journal of Nutrition (2005) concluiu que não há evidência de que proteínas causem danos renais em pessoas sem doença pré-existente.

Quanto aos cálculos, o risco está mais relacionado ao consumo de oxalato (abundante em vegetais como espinafre e beterraba) do que à proteína animal. Dietas carnívoras, ao excluírem oxalatos, podem até reduzir o risco de nefrolitíase em indivíduos predispostos.

Em relação à gota, a elevação do ácido úrico em dietas de baixo carboidrato tende a ser transitória. Estudos documentaram normalização dos níveis após adaptação metabólica, enquanto pacientes relatam redução de crises quando mantêm dieta carnívora estrita.

5. Alegações de cura de doenças

“Não há comprovação científica de que a dieta carnívora cure doenças como diabetes, depressão ou autoimunidade.”

De fato, não se pode falar em “cura” no sentido absoluto. No entanto, há ampla documentação de remissões clínicas e controle de sintomas em condições complexas. Um estudo publicado no Current Developments in Nutrition (2021) acompanhou mais de 2.000 praticantes da dieta carnívora por 14 meses: os resultados mostraram reduções consistentes na glicemia, HbA1c, peso corporal e uso de medicações.

Na Hungria, a equipe da Paleomedicina utiliza a PKD como intervenção terapêutica em doenças autoimunes e neurológicas, com relatos de estabilização clínica e, em alguns casos, suspensão de imunossupressores. Em psiquiatria nutricional, há registros de melhora em depressão resistente e transtornos de humor, possivelmente ligados à estabilização energética e à ausência de antinutrientes vegetais.

Portanto, embora não se fale em cura definitiva, ignorar tais evidências é omitir dados relevantes.

6. Carne processada e câncer colorretal

“O consumo de carne processada aumenta o risco de câncer de intestino.”

A IARC classificou carnes processadas como carcinógenas do grupo 1, mas essa classificação refere-se a força da evidência, não ao grau de risco. O aumento de risco relativo estimado foi de 18% por 50g de carne processada ao dia. No entanto, quando convertido em risco absoluto, isso representa cerca de 1 caso adicional em 100 pessoas ao longo da vida.

Além disso, muitos estudos não distinguem carne fresca processada artesanalmente de produtos industrializados com aditivos como nitrito de sódio, o que gera distorções. Um exemplo é a Coreia do Sul: o consumo de carne processada é baixo, mas o câncer colorretal tem alta incidência, revelando a influência de múltiplos fatores — estilo de vida, genética, álcool e tabaco.

Assim, a associação entre carne processada e câncer não é universal nem suficientemente robusta para justificar condenação absoluta da dieta carnívora.

Considerações finais

A análise das críticas demonstra que muitas das alegações contra a dieta carnívora partem de extrapolações ou interpretações antigas, sem considerar dados recentes. Populações tradicionais como inuítes, maasais e habitantes das estepes mongóis sobreviveram por séculos consumindo majoritariamente carne, sem apresentar epidemias de doenças crônicas.

A dieta carnívora não deve ser vista como panaceia universal, mas também não pode ser descartada como perigosa sem evidência. Relatos clínicos, ensaios observacionais e registros históricos demonstram que ela pode ser segura e até terapêutica em condições específicas. O discurso simplista que reduz essa prática alimentar a “sem base científica” ignora nuances importantes e priva a sociedade de discutir alternativas viáveis para o enfrentamento da epidemia metabólica contemporânea.

Fonte: https://oglobo.globo.com/blogs/espiritualidade-e-bem-estar/post/2025/07/os-riscos-da-dieta-carnivora.ghtml

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