A fome é frequentemente interpretada como um sinal direto do corpo de que precisa de energia ou nutrientes. Essa visão simplificada, no entanto, ignora a complexidade de processos que envolvem não apenas o estômago, mas sobretudo o cérebro. O conceito de fome cefálica descreve justamente essa influência: trata-se da fome desencadeada por estímulos mentais, emocionais e sensoriais relacionados à comida, antes mesmo de qualquer necessidade fisiológica real.
Em termos práticos, isso significa que muitas vezes não se come porque o corpo precisa de energia, mas porque se viu, sentiu o cheiro ou até pensou em um alimento. Esse fenômeno é explicado pelos chamados reflexos da fase cefálica (Cephalic Phase Responses – CPRs), respostas antecipatórias do organismo que preparam o sistema digestivo para a chegada de alimento.
Como o cérebro dispara a fome
Imagine caminhar por um shopping e sentir o aroma de pães recém-assados. Mesmo que tenha acabado de almoçar, a sensação de fome pode surgir quase instantaneamente. O mesmo ocorre com o cheiro de pipoca no cinema ou diante de um anúncio de fast food na televisão. Isso não acontece por acaso: são mecanismos evolutivos que associam estímulos externos ao ato de comer.
De acordo com uma revisão publicada na Nutrition Reviews (Smeets P. et al., 2010), os reflexos da fase cefálica incluem:
- aumento da salivação,
- movimentação do estômago,
- secreção de enzimas digestivas pelo pâncreas,
- liberação de insulina e grelina.
Esses hormônios são fundamentais. A insulina prepara o corpo para armazenar energia, enquanto a grelina aumenta a sensação de fome. O ponto mais interessante é que essas respostas são desencadeadas antes mesmo da ingestão do alimento. Ou seja, o simples contato visual, olfativo ou até a memória de uma comida pode induzir a fome e influenciar quanto será consumido.
O ambiente obesogênico
Se a fome pode ser acionada por estímulos externos, a abundância de comida disponível hoje potencializa esse mecanismo. Nas últimas décadas, a mudança foi radical: restaurantes, lanchonetes e cafeterias multiplicaram-se em todos os espaços urbanos. Gasolinas oferecem fast food, hospitais contam com lojas de conveniência e até bibliotecas e livrarias muitas vezes têm cafeterias com vitrines repletas de doces.
Esse ambiente “obesogênico”, onde a comida está sempre à vista, facilita a ativação contínua dos reflexos da fome cefálica. A consequência é óbvia: aumento no consumo calórico, ganho de peso e dificuldade em manter hábitos alimentares saudáveis.
Expectativa e placebo alimentar
Outro fator decisivo é a expectativa. Estudos mostram que a percepção de um alimento pode ser tão poderosa quanto sua composição real.
Em um experimento, dois grupos receberam o mesmo milkshake de 380 calorias. Para o primeiro, foi dito que tinha 620 calorias (“indulgente”); para o segundo, que possuía apenas 140 calorias (“leve”). O resultado? O grupo que acreditava ter tomado a versão mais calórica apresentou uma queda mais acentuada nos níveis de grelina, relatando maior saciedade. Isso significa que a mente modulou a resposta hormonal da fome.
Outro exemplo curioso envolve barras de proteína. Quando rotuladas como “saudáveis”, as pessoas relataram até 60% mais fome após o consumo, em comparação com a mesma barra apresentada como “saborosa”. Esse efeito também se observa em refeições descritas como “leves” ou “dietéticas”, que frequentemente deixam a sensação de insatisfação — não por seu conteúdo calórico, mas pela expectativa de que não seriam saciantes.
Esses experimentos demonstram que rótulos, nomes e até descrições indulgentes (como “Bang Bang Brócolis” ou “Batata-doce Zesty”) podem alterar o comportamento alimentar. Vegetais com descrições atrativas foram consumidos até 30% mais do que quando apresentados de forma neutra.
O impacto do sono na fome
O sono exerce influência direta sobre os hormônios que regulam o apetite. Estima-se que 33% dos adultos dormem menos do que o recomendado, em parte devido à iluminação artificial e ao excesso de telas. A privação de sono, mesmo por uma única noite, pode elevar os níveis de grelina em cerca de 22%, dobrando a sensação subjetiva de fome no dia seguinte. Curiosamente, esse efeito é mais intenso em mulheres.
Essa relação ajuda a explicar por que noites mal dormidas estão ligadas a maior risco de obesidade. O corpo estressado pela falta de descanso tende a liberar mais cortisol, hormônio que favorece o acúmulo de gordura abdominal.
Fome social e fome por tédio
Nem sempre a fome está associada ao estômago. Muitas vezes, comer é apenas um pretexto social. Reuniões de amigos, encontros familiares ou simples idas a um bar frequentemente giram em torno de refeições, mesmo quando ninguém está realmente com fome.
O tédio também é um gatilho conhecido. Quando não há nada para fazer, buscar comida se torna um passatempo prazeroso e de fácil acesso. Isso explica porque momentos de ociosidade em casa costumam levar a “beliscar” alimentos, quase sempre os ultraprocessados disponíveis na despensa.
Estratégias para lidar com a fome cefálica
Diante de um cenário em que o ambiente, a mente e os hábitos sociais estimulam constantemente a fome, algumas estratégias podem ajudar no controle:
- Reduzir os gatilhos ambientais: evitar propagandas de comida, não manter guloseimas à vista, e até usar aplicativos para pedir café sem se expor às vitrines de doces.
- Valorizar o sono: manter rotina de sono adequada reduz a liberação de grelina e ajuda a equilibrar o apetite.
- Reformular experiências sociais: substituir encontros centrados em comida por caminhadas, esportes ou atividades criativas.
- Atenção às expectativas: não se prender a rótulos de “diet” ou “leve”, pois eles podem induzir à insatisfação e ao aumento da fome.
- Manter-se ocupado: hobbies e atividades físicas ajudam a desviar a atenção do comer por tédio.
- Apoiar-se na memória alimentar: estudos indicam que lembrar conscientemente da última refeição pode reduzir a fome subsequente, mostrando que a memória influencia tanto quanto o estímulo externo.
Considerações finais
A fome não é apenas um sinal de um estômago vazio, mas o resultado da interação complexa entre corpo, cérebro, ambiente e cultura. Os reflexos da fase cefálica mostram que os sentidos e as expectativas moldam a experiência alimentar de forma tão ou mais poderosa do que a real necessidade energética.
Em uma sociedade onde os estímulos alimentares estão por toda parte, aprender a reconhecer a fome cefálica e aplicar estratégias para reduzi-la pode ser um passo fundamental na prevenção da obesidade e no controle do apetite. Mais do que contar calorias, compreender como o cérebro participa do ato de comer pode ser a chave para escolhas mais conscientes e saudáveis.
Fonte: https://drjasonfung.medium.com/cephalic-hunger-1a8dbe4ee83b
