Um estudo recente publicado na Obesity Pillars que avaliou a ocorrência de deficiências nutricionais e perda de massa muscular em adultos tratados com agonistas do receptor de GLP‑1 (GLP‑1RA). O trabalho analisou 461.382 pessoas iniciando GLP‑1RA entre 2017 e 2021, usando dados de contas médicas (claims), e acompanhou diagnósticos em 6 e 12 meses após o início da terapia.
Por que isso importa
Os GLP‑1RA promovem perda de peso principalmente por redução de massa gorda e por menor ingestão energética, mas podem cursar com deficiências de micronutrientes e perda de massa muscular, aspectos clinicamente relevantes para quem vive com diabetes e/ou obesidade.
Além do efeito anorexígeno (redução do apetite) e eventos gastrointestinais, há discussões sobre impacto em absorção e metabolismo de micronutrientes e até risco de desidratação, o que reforça a necessidade de monitoramento nutricional sistemático.
Como o estudo foi conduzido
- Desenho: observacional, retrospectivo, com análise de dados de saúde (Inovalon Insights Claims). Incluiu adultos de 18–89 anos com 6 meses de plano de saúde antes e 12 meses após o início do GLP‑1RA. Foram excluídos indivíduos com deficiência nutricional registrada nos 6 meses anteriores ao início.
- Desfechos primários: incidência de deficiências nutricionais (vitaminas e minerais) e complicações relacionadas (anemias nutricionais, perda muscular, desidratação), em 6 e 12 meses. As deficiências foram identificadas por códigos CID‑10.
- Análises secundárias: comparação entre usuários de GLP‑1RA + metformina versus metformina isolada por propensity score com pareamento dependente do tempo; e comparação da incidência de deficiências entre quem consultou nutricionista (em até 6 meses do início) versus quem não consultou.
- População: maioria feminina (56,3%), idade média 52,9 anos; 80,5% tinham diabetes tipo 2; 44,9% obesidade e 66,3% hipertensão.
Principais achados (12 meses após início do GLP‑1RA)
- Qualquer deficiência nutricional ou complicação: 22,4%. Em 6 meses, 12,7%.
- Deficiência de vitamina D foi a mais comum: 13,6% em 12 meses (7,5% em 6 meses).
- Anemia nutricional (complicação) atingiu 4,0% em 12 meses (2,1% em 6 meses).
- Diagnóstico de perda muscular foi registrado em 3,0% em 12 meses (1,5% em 6 meses).
- Entre os agentes, ao longo da coorte (2017–2022), os mais prescritos foram dulaglutida (38,4%), semaglutida (28,8%) e liraglutida (28,4%); semaglutida tornou‑se a mais prescrita em 2021.
Nutricionista e detecção de deficiências
O estudo também examinou se ter consulta registrada com nutricionista (até 6 meses do início do GLP‑1RA) se associava a maior identificação de deficiências:
- Em 6 meses, “qualquer deficiência/complicação” foi registrada em 18,5% com nutricionista versus 12,2% sem;
- Em 12 meses, 29,8% com nutricionista versus 21,8% sem.
- Essas diferenças foram estatisticamente significativas.
- Interpretação: em estudos baseados em claims, a presença de consultas pode refletir maior vigilância e rastreamento — não necessariamente maior risco causal —, o que provavelmente contribuiu para detecção mais frequente de diagnósticos em quem foi acompanhado por nutricionista. Os próprios autores observam limitações da base por depender de registros de faturamento e por não capturar uso de suplementos sem prescrição, consultas pagas fora do seguro e dados de atividade física, o que pode levar a sub‑ ou superestimações e dificulta interpretar perda muscular.
Comparação com coorte pareada (GLP‑1RA + metformina vs. metformina)
No conjunto pareado (4.505 em cada grupo), não houve diferenças significativas em 6 meses (exceto para “outras deficiências de vitaminas do complexo B”). Em 12 meses, a incidência geral de deficiências foi maior nos usuários de GLP‑1RA, com destaque para tiamina e vitamina D.
O que estes dados significam na prática clínica
- Deficiências são comuns no primeiro ano
- Mais de 1 em cada 5 pacientes recebeu diagnóstico de deficiência/complicação em 12 meses, com predominância de vitamina D. Isso indica a necessidade de rastreio laboratorial e acompanhamento clínico estruturado.
- Perda muscular exige atenção
- Registros de perda muscular ocorreram em até 3% em 12 meses. Embora o dado derive de códigos de diagnóstico (sem método clínico detalhado), ele se soma a evidências prévias de perda de massa magra em protocolos de perda ponderal, reforçando a vigilância.
- Acompanhamento nutricional especializado
- Os autores enfatizam a inclusão de especialistas em nutrição (médicos com atuação em nutrição clínica, nutricionistas e outros profissionais) para identificar, corrigir e manejar deficiências nessa população. Também citam posicionamentos institucionais que apoiam integração de terapia nutricional no cuidado de pessoas em uso de medicamentos para obesidade/diabetes.
Limitações reconhecidas pelos autores
- Base de dados de claims: depende de registro e cobrança dos serviços/diagnósticos; não reflete eventos não facturados; pode subestimar ou superestimar incidências.
- Suplementos e consultas fora do seguro: não capturados; isso pode alterar a interpretação de deficiências (p. ex., uso de vitamina D não registrado).
- Atividade física e contexto clínico dos diagnósticos: não disponíveis; dificulta avaliar perda muscular e sua magnitude clínica.
- Conflitos de interesse e financiamento: estudo financiado pela Abbott; vários autores são funcionários ou trabalharam sob contrato com a empresa.
Conclusões dos autores
- Em uma grande coorte de adultos com obesidade/sobrepeso e/ou diabetes tipo 2, >20% tiveram deficiências nutricionais diagnosticadas em 12 meses após iniciar GLP‑1RA.
- Os achados ressaltam a importância do rastreio e do diagnóstico de deficiências, com inclusão de especialistas em nutrição no cuidado.
- Há necessidade de pesquisas futuras para definir diretrizes de monitoramento e manejo nutricional em farmacoterapia da obesidade.
Notas metodológicas adicionais
- A incidência por micronutriente aos 12 meses incluiu, por exemplo: vitamina D (13,6%), complexo B “outros” (2,6%), zinco (0,0–0,1%), além de desidratação (3,5%); detalhes completos constam na Tabela 2 do artigo.
- O estudo também descreve a mudança temporal no uso de fármacos do grupo (com semaglutida tornando‑se a mais prescrita em 2021), fornecendo contexto terapêutico para o período observado.
Implicações práticas (conforme os autores)
- Rastreio laboratorial direcionado (p. ex., vitamina D, B12, ferro, folato) pode ser considerado na rotina clínica de pacientes em uso de GLP‑1RA, à luz dos achados e de documentos técnicos citados pelos autores.
- Educação alimentar e ajustes individualizados de ingestão proteica e de micronutrientes, com apoio de nutricionistas e médicos com atuação em nutrição, são estratégicos para mitigar riscos e otimizar resultados clínicos.
- Importante: todas as afirmações acima derivam exclusivamente do artigo analisado e de referências citadas dentro dele, sem extrapolações.
