A relação entre alimentação e diabetes tipo 2 é um dos temas mais debatidos na ciência da nutrição. Por décadas, a explicação dominante apontou para os carboidratos como principais vilões. Entretanto, algumas evidências históricas e estudos modernos sugerem que a realidade é mais complexa.
Um exemplo marcante vem de um estudo clássico de 1987, realizado no Togo, na África Ocidental, em uma comunidade rural que consumia quase 85% de carboidratos, sobretudo mandioca, com ingestão muito baixa de proteína e gordura. Surpreendentemente, os pesquisadores encontraram zero casos de diabetes em toda a população estudada.
Décadas mais tarde, em 2025, pesquisadores europeus mostraram em laboratório que a restrição proteica próxima ao limite mínimo recomendado pode desencadear adaptações metabólicas mediadas pelo hormônio FGF21 (Fibroblast Growth Factor 21), aumentando o gasto energético e melhorando a sensibilidade à insulina. Embora o FGF21 não tenha sido medido no estudo africano, levanta-se a hipótese de que um mecanismo semelhante possa ter contribuído para a proteção metabólica observada.
Esse debate ganha ainda mais importância no cenário atual, marcado por uma epidemia global de diabetes. Diferente das populações tradicionais, o aumento explosivo da doença acompanha a transição alimentar para dietas ricas em alimentos ultraprocessados e, em especial, no consumo sem precedentes de óleos vegetais refinados, algo inexistente na dieta humana até o início do século XX.
O Estudo Africano de 1987: Uma Comunidade Sem Diabetes
O estudo de Teuscher e colaboradores avaliou praticamente toda a população de duas vilas no Togo:
- Agbave: 1.028 de 1.038 habitantes.
- Kati: 353 indivíduos em amostra aleatória de 2.850 habitantes.
- Total: 1.381 pessoas examinadas.
Achados principais
- Glicemia: média de 5,1 mmol/L em homens e mulheres; nenhum caso de diabetes.
- Estado nutricional: IMC médio de 20,2 (homens) e 20,7 (mulheres); obesidade praticamente ausente (0,5% homens, 4,4% mulheres).
- Dieta:
- 1.916 kcal/dia em média.
- 84% carboidratos (403 g/dia).
- 8% proteína (39 g/dia, ou 0,7–0,8 g/kg/dia).
- 9% gordura (19 g/dia).
- Mandioca presente diariamente em 85% dos lares, frequentemente em mais de uma refeição.
- Processamento tradicional (fermentação e cocção) reduzia compostos tóxicos da mandioca.
- Infecções: 100% dos testados com sorologia positiva para malária; níveis de IgG duas vezes superiores aos europeus.
Os autores concluíram que a ausência de diabetes estava associada ao baixo índice de obesidade, à intensa atividade física e à dieta simples, e não a um suposto “diabetes tropical” relacionado à mandioca, como se pensava na época.
O Estudo Europeu de 2025: Restrição Proteica e FGF21
Em 2025, Nicolaisen e colegas investigaram o impacto de dietas com proteína mínima (~0,8–0,9 g/kg/dia) em homens jovens saudáveis.
Resultados
- FGF21 plasmático aumentou entre 270% e 360%.
- Maior gasto energético: até 20% a mais de calorias necessárias para manter o peso.
- Melhora da sensibilidade à insulina, especialmente quando carboidratos substituíram proteínas.
- Massa magra preservada mesmo com proteína no limite mínimo.
- Adaptações no tecido adiposo, com aumento da atividade mitocondrial.
O FGF21 surgiu como hormônio-chave nesse processo, funcionando como um “sensor” de baixa proteína que reorganiza o metabolismo para gastar mais energia e tolerar melhor a glicose.
A Hipótese de Ligação
Ao comparar os dois cenários:
- Togo (1987): proteína 0,7–0,8 g/kg/dia, carboidratos 84%.
- Estudo europeu (2025): proteína 0,8–0,9 g/kg/dia, carboidratos elevados.
Em ambos, a proteína esteve no limite inferior da recomendação da OMS (0,83 g/kg/dia). O estudo de 2025 mostrou que essa condição ativa o FGF21, o que poderia explicar a boa tolerância à glicose observada em Togo.
Importante: esta é apenas uma hipótese, pois o estudo africano não mediu FGF21. No entanto, a coincidência dos cenários sugere que a ausência de diabetes em Togo pode refletir tanto o estilo de vida ativo e a magreza quanto um possível mecanismo hormonal adaptativo.
O Papel dos Óleos Vegetais e Ultraprocessados na Epidemia Atual
A comparação com a realidade contemporânea levanta uma questão central: se populações tradicionais consumiam dietas ricas em carboidratos naturais sem desenvolver diabetes, o que mudou no ambiente moderno?
Carboidratos naturais não parecem ser o vilão
- Africanos rurais comendo mandioca, asiáticos tradicionais comendo arroz, ou povos andinos consumindo batata — todos tinham baixíssimas taxas de diabetes até a introdução de alimentos industrializados.
- O problema surge não com o carboidrato natural, mas com o excesso calórico e a perda do estilo de vida ativo.
Óleos vegetais refinados como candidatos centrais
- Ricos em ácido linoleico (ômega-6), quando consumidos em excesso podem promover inflamação crônica, resistência à insulina e acúmulo de gordura no fígado.
- Seu consumo cresceu exponencialmente no século XX, em paralelo com a epidemia de obesidade e diabetes.
- Diferente de tubérculos ou grãos integrais, óleos refinados não faziam parte da dieta humana tradicional.
Ultraprocessados: a combinação letal
- Juntam açúcares refinados, óleos vegetais e farinhas industriais, formando alimentos de alta densidade calórica e baixo poder de saciedade.
- Esse padrão alimentar explica a escalada de doenças metabólicas muito mais do que o simples consumo de carboidratos.
Conclusão
O estudo de Togo, em 1987, mostrou que uma comunidade vivendo com dieta baseada em mandioca e outros tubérculos, com baixa proteína e pouca gordura, apresentava zero casos de diabetes. O estudo de 2025 sugere que a adaptação metabólica induzida pela restrição proteica mínima, possivelmente mediada pelo FGF21, poderia estar entre os mecanismos explicativos.
Ao mesmo tempo, a epidemia atual de diabetes parece estar mais ligada ao consumo de óleos vegetais refinados e alimentos ultraprocessados do que ao simples consumo de carboidratos naturais. Ou seja, não é a mandioca, o arroz ou a batata que explicam a crise atual, mas sim a transição alimentar para produtos industrializados que distorcem a resposta metabólica humana.
Fonte: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(87)92797-8
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