Ao longo da evolução, diversos microrganismos aprenderam a se adaptar ao ambiente metabólico de seus hospedeiros para sobreviver. Entre eles, o Plasmodium — agente causador da malária — demonstra notável sensibilidade às condições metabólicas do organismo humano, ajustando sua replicação, virulência e desenvolvimento de acordo com os nutrientes disponíveis. No entanto, uma descoberta recente lança nova luz sobre como essas adaptações podem ser usadas contra o próprio parasita.
Publicado em julho de 2025 na revista Nature Metabolism, o estudo de Wei et al. investigou o impacto de uma dieta cetogênica — rica em gordura e pobre em carboidratos — sobre a progressão da malária em modelos experimentais. Os resultados indicam que níveis elevados do corpo cetônico β-hidroxibutirato (βOHB), alcançados tanto por suplementação quanto por dieta cetogênica, são capazes de inibir a proliferação do parasita in vitro e in vivo.
Inibição da malária em múltiplos estágios
Após a infecção hepática, o Plasmodium se transforma em merozoítas e invade os glóbulos vermelhos (hemácias), onde se reproduz. A infecção progride por diferentes fases intracelulares, até que os parasitas se rompem das células e iniciam novas invasões, perpetuando o ciclo. Nesse estudo, os pesquisadores observaram que o βOHB bloqueou a progressão desse ciclo, impedindo o desenvolvimento dos parasitas no estágio de trofozoíta.
Supressão gênica direcionada
Por meio de análise transcriptômica em células infectadas de camundongos sob dieta cetogênica, e também em culturas de P. falciparum tratadas com βOHB, foi constatada a supressão de genes essenciais para a invasão das hemácias, como os que codificam AMA1 (antígeno da membrana apical) e as proteínas da superfície do merozoíta (MSPs). Além disso, houve repressão de genes relacionados à motilidade, replicação, gametogênese e à saída dos parasitas das células hospedeiras, como os da família SERA.
Mecanismo epigenético e metabólico
O βOHB exerce seus efeitos inibidores não apenas por via metabólica, mas também por mecanismos epigenéticos. Durante o estudo, foi observada uma redução nos níveis celulares de NAD+ (nicotinamida adenina dinucleotídeo), uma coenzima essencial para a atividade de enzimas epigenéticas como as histonas desacetilases (HDACs), incluindo SIRT1. A depleção de NAD+ compromete a atividade dessas enzimas, resultando em alterações na expressão gênica dos parasitas.
De forma complementar, o βOHB também parece inibir diretamente HDACs dependentes de NAD+, promovendo uma reprogramação epigenética que reprime seletivamente genes cruciais para o ciclo de vida do Plasmodium. Um dos principais alvos identificados foi a família de fatores de transcrição ApiAP2, particularmente importantes para a regulação de genes no estágio de merozoíta. O bloqueio da expressão de ApiAP2 foi revertido pela reposição de NAD+, reforçando a hipótese do envolvimento dessa via.
Potencial terapêutico e questões em aberto
Embora os níveis de βOHB que inibiram os parasitas estejam dentro da faixa observada em quadros de cetoacidose diabética, não está claro se esses níveis podem ser alcançados com segurança por meio de intervenções nutricionais como a dieta cetogênica em humanos. O estudo levanta ainda outras questões importantes:
- Seria possível modular a suscetibilidade à infecção malárica por meio de estratégias nutricionais ou metabólicas?
- Variações genéticas no metabolismo de corpos cetônicos poderiam influenciar o risco de infecção?
- Existiriam outros metabólitos endógenos com efeito antiparasitário semelhante?
Apesar dessas incertezas, os achados ressaltam um conceito emergente na biomedicina: o de “imunidade metabólica”, no qual alterações no estado metabólico do hospedeiro, induzidas por dieta ou jejum, afetam diretamente a viabilidade de patógenos intracelulares.
O trabalho de Wei et al. não apenas oferece uma nova perspectiva sobre o papel da dieta cetogênica na saúde infecciosa, mas também abre caminho para futuras abordagens terapêuticas baseadas em manipulação metabólica — uma estratégia que alia nutrição, epigenética e imunidade no combate a doenças parasitárias.
Fonte: https://doi.org/10.1038/s42255-025-01310-0
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