Reserva energética invisível: como os triglicerídeos sustentam a função sináptica no cérebro


Por muito tempo, acreditou-se que os neurônios dependiam exclusivamente da glicose como fonte de energia. A nova pesquisa publicada na revista Nature Metabolism em junho de 2025 desafia essa ideia, demonstrando que triglicerídeos (TGs) estocados em gotículas lipídicas (LDs) são uma fonte essencial de energia para a função sináptica no cérebro.

O papel oculto dos triglicerídeos nos neurônios

Ao investigar a enzima DDHD2 — uma lipase específica de neurônios — os pesquisadores observaram que sua inibição leva à rápida acumulação de LDs em terminais nervosos. Essa enzima é crucial para quebrar os TGs armazenados e liberar ácidos graxos (AGs) que, por sua vez, abastecem as mitocôndrias locais por meio da β-oxidação, sustentando a produção de ATP diretamente nos terminais sinápticos.

Quando DDHD2 foi bloqueada em camundongos ou células neuronais cultivadas, os neurônios acumularam LDs visivelmente — inclusive em regiões sinápticas. O bloqueio dessa via provocou uma queda drástica na temperatura corporal dos animais, um sinal fisiológico conhecido como torpor, indicando falência bioenergética aguda.

Sinapses consomem gordura, não apenas glicose

A equipe mostrou que, mesmo na ausência de glicose, os AGs provenientes das LDs são suficientes para manter a produção de ATP nas mitocôndrias de axônios, permitindo que a atividade sináptica continue. Esse efeito foi confirmado com o uso de um sensor genético fluorescente de ATP, que mostrou queda mínima nos níveis energéticos quando os neurônios eram suplementados com ácido palmítico, mesmo sem glicose disponível.

Em contraste, quando a entrada dos AGs nas mitocôndrias foi bloqueada com etomoxir (um inibidor de CPT1, a enzima que transporta AGs para o interior mitocondrial), o ATP caiu rapidamente, e a função sináptica foi comprometida.

Atividade elétrica regula o uso dos triglicerídeos

Outro achado crucial é que a atividade elétrica dos neurônios regula a mobilização de AGs das LDs. Quando os neurônios foram silenciados com tetrodotoxina (TTX), a quantidade de LDs aumentou significativamente. Isso indica que, em condições normais, a atividade elétrica estimula o consumo contínuo desses lipídios como combustível.

Estimulação elétrica aumentou significativamente a transferência de AGs marcados para as mitocôndrias, um processo que foi bloqueado na presença de etomoxir. Ou seja, a demanda energética oriunda da atividade sináptica direciona o uso dos lipídios locais armazenados para produção de ATP.

Relevância para doenças neurológicas

Mutação em DDHD2 está associada à paraplegia espástica hereditária complexa (HSP54), uma condição neurológica rara com manifestações cognitivas, visuais e motoras. Tanto em camundongos como em humanos, a deficiência de DDHD2 causa acúmulo de lipídios no cérebro e déficit cognitivo, evidenciando a importância dessa via para a saúde neuronal.

Além disso, os autores sugerem que a falência na capacidade de utilizar AGs locais pode contribuir para estados de baixa energia cerebral, especialmente em condições como envelhecimento ou restrição de glicose.

Implicações para o metabolismo cerebral

O estudo desafia o dogma de que o cérebro saudável depende exclusivamente de glicose e revela uma rota bioenergética crítica que envolve o uso local de triglicerídeos armazenados nos neurônios. Essa via, modulada pela atividade elétrica e sustentada por enzimas como DDHD2 e CPT1, oferece uma reserva de energia que garante a continuidade da função sináptica mesmo em situações de escassez de glicose.

Os autores destacam que o sistema nervoso central pode, de forma ativa e regulada, utilizar gordura como combustível — algo até então subestimado. A descoberta reforça a ideia de que diferentes tipos celulares no cérebro (neurônios e astrócitos, por exemplo) possuem papéis distintos no manuseio e fornecimento de lipídios.

Conclusão

Este estudo revela um sistema energético sofisticado, baseado na utilização de triglicerídeos armazenados em gotículas lipídicas dentro dos próprios neurônios. A manutenção dessa via é essencial para a função sináptica, especialmente em situações de demanda energética aumentada ou de limitação de glicose. A descoberta abre caminho para novas estratégias terapêuticas em doenças neurológicas ligadas a distúrbios metabólicos, além de propor uma revisão profunda dos paradigmas sobre o metabolismo cerebral.

Fonte: https://doi.org/10.1038/s42255-025-01321-x

Postagem Anterior Próxima Postagem
Rating: 5 Postado por: