A descoberta do manuscrito medieval Cronica universalis, do frei milanês Galvaneus Flamma, trouxe à luz algo até então inédito: uma menção à América – ou mais especificamente, à região identificada como Markland – feita por volta de 1340, cerca de 150 anos antes da viagem de Cristóvão Colombo. Além de seu valor geográfico, o relato é relevante por conter informações sobre a fauna terrestre dessas regiões distantes, destacando elementos alimentares de origem animal e formas de subsistência dos povos do norte, como os islandeses, groenlandeses e habitantes de Markland.
O relato de Marckalada e a fauna consumível
No trecho do manuscrito em que Galvaneus menciona a terra “que se chama Marckalada”, localizada a oeste da Groenlândia, ele afirma que ali há “árvores verdes, muitos animais e aves”. Embora ele reconheça que nenhum marinheiro conhecia os detalhes daquele lugar com certeza, a descrição sugere uma terra fértil e rica em vida animal – com potencial valor alimentar.
Na tradição das sagas islandesas, das quais provavelmente derivam os relatos orais ouvidos por marinheiros do norte e transmitidos a Galvaneus, Markland é descrita como uma região densamente florestada e abundante em caça, em contraste com a paisagem rochosa de Helluland e a improdutividade agrícola da Groenlândia. Essa distinção geográfica também se reflete nos alimentos disponíveis em cada local, conforme será explorado a seguir.
Groenlândia: leite, carne e peixe como base da subsistência
Galvaneus fornece uma descrição detalhada da alimentação dos habitantes da Groenlândia. Ele afirma que ali:
“Não há trigo, nem vinho, nem frutas, mas vivem de leite, carnes e peixes.”
Essa observação é relevante por apresentar uma dieta exclusivamente baseada em alimentos de origem animal, compatível com as limitações ambientais do Ártico. Em uma época anterior ao desenvolvimento da agricultura intensiva, os groenlandeses noruegueses dependiam de animais domesticados, da pesca e da caça para garantir sua subsistência. Hábitos alimentares baseados em:
- Leite (possivelmente de vacas, cabras ou ovelhas);
- Carnes (de renas domesticadas, aves selvagens, ursos, focas e morsas);
- Peixes (bacalhau, salmão e espécies árticas locais).
Galvaneus menciona também que os moradores viviam em casas subterrâneas, feitas para protegê-los das feras e do frio extremo, e que evitavam fazer barulho para não atrair predadores como os ursos brancos, os quais, segundo a narrativa, “nadam no mar e conduzem os náufragos até a costa”. Ainda que esse trecho seja ambíguo, levanta a possibilidade de associação entre o urso como ameaça e como fonte de alimento e peles, conforme ocorre em outros relatos nórdicos e até em descrições árabes da época.
A importância dos animais caçados e dos produtos animais exóticos
Outro ponto destacado por Galvaneus é o comércio de aves de rapina, em especial os falcones albi (provavelmente gyrfalcons brancos). Ele relata que essas aves eram capturadas nas ilhas ao norte e enviadas ao imperador dos tártaros em Catai (China), como artigos de grande valor. Trata-se de um comércio de origem animal altamente especializado, envolvendo captura, transporte e troca de aves de elite, possivelmente para caça nobre (falcoaria).
Além disso, ele menciona a existência de renas domesticadas em regiões próximas ao Círculo Polar Ártico, usadas como meio de transporte e também fonte de carne. Isso é confirmado por relatos de Marco Polo (utilizados como fonte parcial por Galvaneus), segundo os quais os povos do norte viviam da caça e da criação de renas, e não produziam grãos nem vinho.
Consumo animal como padrão alimentar fora da zona temperada
Galvaneus justifica a habitabilidade de terras extremamente frias e isoladas afirmando que ali as pessoas não morrem facilmente e sobrevivem graças a causas que ele descreve como “ocultas”. Essa suposta resistência dos povos nórdicos pode estar, em parte, relacionada à sua dieta animal rica em gordura e proteínas – embora esse raciocínio seja implícito e não fisiológico.
Na descrição do deserto citado por Marco Polo, Galvaneus reforça o mesmo padrão alimentar:
“Homens vivem de caça de aves e animais, e montam cervos.”
O uso do termo “vivem de” (vivunt de) reforça a dependência quase total de recursos animais.
A cadeia alimentar e o urso branco
Em outro relato exógeno citado por Chiesa, o geógrafo muçulmano Ibn Saʿīd al-Maghribī (c. 1250–1270) descreve uma região do norte da Europa onde há ursos brancos que pescam peixes, e aves brancas que se alimentam dos restos deixados pelos ursos. Essa cadeia alimentar baseada integralmente em animais ilustra a biodiversidade ártica e o interesse do Mediterrâneo por produtos animais exóticos – como peles de urso branco e aves de rapina –, mesmo que esses locais fossem inóspitos à agricultura.
Conclusão
A narrativa de Galvaneus Flamma, ainda que envolta em elementos lendários como gigantes e pedras gigantescas, fornece um testemunho singular sobre o reconhecimento precoce de regiões americanas e árticas a partir de uma perspectiva mediterrânica, especialmente no que se refere à alimentação de origem animal. De maneira consistente, os dados apontam que:
- As terras além da Groenlândia eram vistas como ricas em animais e aves, fonte de alimentação direta e produtos de valor comercial.
- As populações do extremo norte eram descritas como sobrevivendo exclusivamente por meio de recursos animais: caça, pesca, leite e carne.
- O comércio de animais exóticos, como gyrfalcons e peles de urso branco, estabelecia um vínculo indireto entre as Américas, o norte da Europa e o Mediterrâneo antes de 1492.
Esses dados revelam não apenas um conhecimento geográfico inicial da América, mas também um entendimento funcional sobre os alimentos de origem animal disponíveis nessas regiões remotas e frias, cuja exploração comercial e cultural já estava em curso séculos antes do chamado “descobrimento”.