Uma abordagem bioenergética favorece a preservação e proteção de presas, não o cozimento, como os impulsionadores do uso precoce do fogo


Introdução: Repensando as origens do uso do fogo

O controle do fogo representa um marco fundamental na evolução humana, mas as razões que levaram nossos ancestrais a dominarem essa tecnologia permanecem objeto de intenso debate científico. Durante décadas, a comunidade acadêmica tem defendido que o cozimento de alimentos foi o principal motivador para o uso inicial do fogo pelos primeiros humanos. No entanto, uma nova pesquisa publicada na revista Frontiers in Nutrition apresenta evidências convincentes de que a preservação de carne e a proteção contra predadores foram, na verdade, os verdadeiros impulsionadores dessa revolução tecnológica.

Metodologia: Uma análise energética comparativa

Os pesquisadores empregaram uma abordagem bioenergética inovadora para investigar essa questão fundamental. O estudo comparou os retornos energéticos da caça versus coleta de plantas usando dados etnográficos ajustados para as condições do Paleolítico Inferior, período que se estendeu de 1,9 a 0,78 milhões de anos atrás. A análise focou especificamente no Homo erectus, espécie que desenvolveu uma especialização notável na aquisição de grandes presas.

Para calcular o conteúdo calórico das presas da África Oriental, os cientistas utilizaram dados de dissecação de 252 herbívoros de 16 espécies diferentes. Essa abordagem permitiu determinar por quantos dias diferentes animais poderiam sustentar um grupo típico de 25 indivíduos. Simultaneamente, foram analisadas evidências arqueológicas de sítios primitivos com vestígios de fogo, investigando suas associações com restos de fauna de grande porte.

Resultados surpreendentes: A supremacia energética da caça

Os resultados revelaram uma disparidade energética impressionante entre as estratégias de subsistência. A caça de grandes presas (acima de 100 kg) proporcionou retornos energéticos significativamente superiores, alcançando 16.269 calorias por hora, em comparação com apenas 1.443 calorias por hora obtidas através da coleta de plantas. Para contextualizar essa diferença, um único hipopótamo poderia fornecer sustento para um grupo de 25 pessoas por até 22 dias.

Quando os pesquisadores examinaram os sítios arqueológicos mais antigos com evidências de uso de fogo, descobriram um padrão consistente e revelador: todos continham restos de herbívoros de grande porte. Esta correlação sugere fortemente que o fogo era utilizado especificamente em contextos de consumo prolongado de grandes presas.

O custo-benefício do cozimento questionado

Contrariando a hipótese tradicional do cozimento, o estudo demonstrou que os benefícios energéticos de cozinhar alimentos eram modestos demais para justificar os custos de manutenção do fogo. O cozimento de carne oferecia ganhos energéticos de aproximadamente 1.200 calorias por hora, valor insuficiente para compensar os altos custos de coleta de combustível e manutenção das chamas. Por outro lado, a preservação de carne e a proteção contra predadores proporcionavam benefícios econômicos substancialmente maiores.

O contexto evolutivo: Especialização em grandes presas

O estudo situa essas descobertas no contexto mais amplo da evolução humana. Durante o período estudado, o Homo erectus desenvolveu uma especialização extraordinária na aquisição de megaherbívoros, animais que podiam pesar várias toneladas. Esta especialização representou uma adaptação evolutiva fundamental, diferenciando drasticamente os primeiros humanos de seus predecessors que caçavam presas menores.

A abundância de grandes herbívoros no Pleistoceno Inferior era consideravelmente maior do que observamos atualmente. As extinções da megafauna que ocorreram posteriormente reduziram significativamente a capacidade de suporte faunístico dos ecossistemas, enquanto aumentaram simultaneamente a capacidade de suporte da vegetação. Esta realidade histórica torna as analogias etnográficas modernas inadequadas para compreender as condições enfrentadas pelos primeiros humanos.

Pressão de predação: Um fator subestimado

A pesquisa destaca um aspecto frequentemente negligenciado: a intensa pressão de predação enfrentada pelo Homo erectus. Com peso corporal estimado entre 60-70 kg e especialização em grandes presas, estes hominídeos se encaixavam perfeitamente no perfil de espécies vulneráveis a competição interespecífica com outros carnívoros. A presença de carcaças parcialmente consumidas atraia inevitavelmente predadores e carniceiros, elevando tanto o risco de roubo de presas quanto de predação sobre os próprios humanos.

O fogo oferecia uma solução eficaz para este problema duplo, funcionando como proteção contínua durante os longos períodos de consumo que caracterizavam a exploração de megaherbívoros. Um único elefante de tromba reta, por exemplo, poderia sustentar um grupo de caçadores-coletores por mínimo de três meses, desde que métodos adequados de preservação estivessem disponíveis.

Implicações para a compreensão da evolução humana

Esta pesquisa oferece uma perspectiva fundamentalmente nova sobre o papel do fogo na evolução humana. Em vez de representar simplesmente uma inovação culinária, o controle do fogo emerge como uma adaptação estratégica para maximizar os retornos de uma atividade de subsistência crucial. Esta reinterpretação alinha-se com evidências crescentes de que o Homo erectus desenvolveu um estilo de vida hipercarnívoro, dependendo de carne e gordura para mais de 70% de suas necessidades energéticas.

As demandas cognitivas associadas à produção e manutenção do fogo para preservação e proteção podem ter sido instrumentais no aumento prolongado do volume cerebral observado no Homo erectus. Esta hipótese não contradiz completamente as proposições anteriores sobre a importância do fogo na evolução humana, mas reorienta o foco para a especialização na caça de grandes presas como o verdadeiro motor evolutivo.

Conclusões e perspectivas futuras

O estudo conclui que a preservação de carne e a proteção contra predadores, ao invés do cozimento, foram provavelmente os principais impulsionadores do uso precoce do fogo. Esta conclusão baseia-se em uma análise rigorosa dos custos e benefícios energéticos, evidências arqueológicas consistentes e uma compreensão mais precisa das condições ambientais do Paleolítico Inferior.

A pesquisa redefine fundamentalmente nossa compreensão do papel do fogo na evolução humana, sugerindo que ele apoiou um estilo de vida hipercarnívoro e potencialmente influenciou o desenvolvimento cognitivo de maneiras até então não totalmente apreciadas. Este trabalho abre novas avenidas de investigação sobre as estratégias adaptativas dos primeiros humanos e sua relação com as mudanças ambientais e extinções de megafauna que caracterizaram o Pleistoceno.

Fonte: https://doi.org/10.3389/fnut.2025.1585182

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