Nos debates sobre alimentação e inflamação, a carne vermelha costuma ocupar o centro das atenções — muitas vezes de forma negativa. Diretrizes alimentares e narrativas populares recomendam reduzi-la ou eliminá-la com base em associações com doenças cardiovasculares. No entanto, estudos recentes têm questionado essa generalização, especialmente no que diz respeito à carne não processada. Um exemplo relevante é a pesquisa publicada no The American Journal of Clinical Nutrition, que utilizou análises metabolômicas avançadas para investigar o papel da carne vermelha na inflamação — e revelou resultados surpreendentes.
Objetivo do estudo
O trabalho teve como foco analisar se o consumo de carne vermelha, processada e não processada, estaria relacionado a marcadores inflamatórios como proteína C reativa (PCR), interleucinas (IL-2, IL-6), fibrinogênio, homocisteína e TNF-α. O estudo também avaliou, por meio de espectroscopia de ressonância magnética nuclear (1H NMR), se determinados metabólitos plasmáticos — como a glutamina — poderiam estar envolvidos nesse processo.
Foram analisados dados de 6.224 adultos do Multi-Ethnic Study of Atherosclerosis (MESA), um grande estudo de base populacional nos Estados Unidos. A ingestão alimentar foi avaliada por questionário de frequência alimentar, e as análises foram ajustadas para variáveis como idade, sexo, etnia, nível educacional, atividade física, tabagismo e, em modelos específicos, índice de massa corporal (IMC).
Resultados principais
1. Nenhuma associação entre carne vermelha e inflamação após ajuste pelo IMC
Nos modelos iniciais, o consumo de carne vermelha não processada mostrou uma leve associação positiva com a PCR. No entanto, essa associação desapareceu após o ajuste pelo IMC, indicando que o fator determinante não é o alimento, mas sim o excesso de gordura corporal. A carne processada não apresentou nenhuma associação significativa com marcadores inflamatórios, independentemente do IMC.
2. Glutamina: um elo entre carne vermelha e menor inflamação
Por meio da análise metabolômica, os autores identificaram que a ingestão de carne vermelha não processada estava associada a níveis plasmáticos mais baixos de glutamina, mas esse achado também era influenciado pelo IMC.
Quando o IMC foi controlado, observou-se que:
- A carne vermelha passou a se associar positivamente à glutamina, um aminoácido com ação anti-inflamatória.
- A glutamina, por sua vez, se associou negativamente à PCR e à IL-6, explicando até 5,5% da variação nos níveis de PCR — valor muito superior ao explicado diretamente pela carne (0,4%).
Essa evidência reforça o papel da glutamina como mediadora metabólica da resposta inflamatória, especialmente entre pessoas com peso corporal normal.
3. Glutamina como produto do metabolismo de aminoácidos da carne
A glutamina é sintetizada endogenamente a partir de aminoácidos de cadeia ramificada, como leucina, isoleucina e valina — todos abundantemente presentes na carne vermelha. Assim, embora a carne não contenha glutamina em grandes quantidades livres, ela fornece os precursores essenciais para sua síntese, ligando diretamente o consumo proteico à regulação inflamatória.
4. IMC interfere nas concentrações de glutamina e marcadores inflamatórios
Pessoas com maior IMC apresentaram níveis mais baixos de glutamina e histidina — outro aminoácido com propriedades anti-inflamatórias — além de níveis mais altos de PCR. Isso sugere que a inflamação atribuída à carne pode, na verdade, ser reflexo do excesso de adiposidade, e não do alimento em si.
Implicações práticas
Este estudo contribui para uma reavaliação crítica das recomendações alimentares que demonizam a carne vermelha não processada. As principais conclusões podem ser resumidas da seguinte forma:
- Não há evidência de que a carne vermelha não processada aumente a inflamação em indivíduos com peso corporal saudável.
- A glutamina, potencialmente derivada do metabolismo de aminoácidos presentes na carne, tem ação anti-inflamatória clara, especialmente sobre a PCR.
- O uso de marcadores metabólicos como a glutamina é mais sensível do que questionários dietéticos na detecção de associações reais entre alimentação e inflamação.
- A composição corporal (e não o alimento isolado) desempenha papel central na resposta inflamatória.
Considerações finais
A carne vermelha não processada, quando consumida no contexto de um peso corporal saudável, não contribui para inflamação sistêmica. Pelo contrário, pode fornecer substratos metabólicos valiosos, como os aminoácidos precursores da glutamina, que ajudam a modular a resposta inflamatória de forma positiva.
Essas descobertas apoiam uma abordagem alimentar mais individualizada, baseada em marcadores objetivos e dados metabólicos, afastando-se de julgamentos simplistas que desconsideram o contexto metabólico de cada indivíduo. Em vez de condenar a carne vermelha como vilã, é mais útil considerar o estado nutricional e metabólico como determinante do impacto de qualquer alimento sobre a saúde.
Fonte: https://doi.org/10.1016/j.ajcnut.2023.08.018