A crescente prevalência de obesidade, diabetes tipo 2 e doenças metabólicas associadas tem impulsionado o desenvolvimento de terapias que atuem não apenas na redução de peso, mas também na melhoria da saúde metabólica de forma integrada. Nesse contexto, a retatrutida — um agonista triplo dos receptores GLP-1, GIP e glucagon — vem ganhando destaque, sendo descrita por alguns como uma tentativa farmacológica de simular os efeitos da dieta cetogênica. A pergunta central levantada por especialistas e entusiastas da área metabólica é se essa nova medicação representa, de fato, uma forma de "cetose em uma ampola".
O que é a retatrutida?
A retatrutida é um fármaco experimental desenvolvido pela farmacêutica Eli Lilly que combina a ação sobre três vias hormonais: o GLP-1 (peptídeo semelhante ao glucagon tipo 1), o GIP (peptídeo inibidor gástrico) e o receptor de glucagon. Essa combinação busca maximizar os efeitos benéficos observados com os agonistas de GLP-1 — já bem estabelecidos no tratamento da obesidade e do diabetes tipo 2 — ao mesmo tempo em que potencializa a queima de gordura e o gasto energético por meio da ativação do receptor de glucagon.
Os agonistas de GLP-1, como a semaglutida (Ozempic, Wegovy), já são amplamente utilizados para promover saciedade, retardar o esvaziamento gástrico e melhorar o controle glicêmico. A inclusão do GIP visa ampliar a resposta à insulina e contribuir para uma menor resposta hiperglicêmica. Mas é a ativação do receptor de glucagon que confere à retatrutida seu diferencial metabólico: esse estímulo promove a lipólise (quebra de gordura) e estimula a produção hepática de corpos cetônicos — processo semelhante ao que ocorre durante a restrição de carboidratos em uma dieta cetogênica.
Evidências clínicas: cetose farmacológica?
Estudos recentes apresentados na American Diabetes Association em 2023 investigaram os efeitos metabólicos da retatrutida ao longo de 24 semanas de tratamento. Os dados revelaram que pacientes tratados com o fármaco apresentaram elevações significativas nos níveis de β-hidroxibutirato, o principal corpo cetônico circulante. Essa observação indica que, mesmo sem seguir uma dieta cetogênica, os indivíduos em uso de retatrutida passaram a oxidar mais gordura e gerar cetonas — uma espécie de "atalho" farmacológico para a cetogênese.
No entanto, os níveis de cetonas atingidos foram, em geral, modestos. A concentração média de β-hidroxibutirato permaneceu abaixo de 0,5 mmol/L, um valor inferior aos patamares considerados característicos de cetose nutricional (entre 0,5 e 3,0 mmol/L). Ainda assim, essa elevação sugere uma mudança significativa na preferência do organismo por oxidação de gordura, especialmente em comparação com o padrão metabólico de indivíduos com resistência à insulina ou obesidade, que frequentemente apresentam bloqueios no uso de gordura como fonte primária de energia.
O perfil de cetose induzido pela retatrutida se diferencia substancialmente do observado com a dieta cetogênica terapêutica (como a dieta cetogênica paleolítica ou a PKD), na qual a restrição severa de carboidratos e a alta ingestão de gordura animal promovem uma cetogênese endógena muito mais acentuada. Na PKD, por exemplo, os níveis de β-hidroxibutirato frequentemente excedem 2,0 mmol/L em jejum, indicando uma mudança metabólica profunda e sustentada. Já na retatrutida, a cetose é mais discreta e transitória.
Redução de gordura hepática: um benefício adicional
Entre os efeitos colaterais metabólicos positivos da retatrutida está a sua capacidade de reduzir a gordura hepática. Em um estudo com 98 pacientes com esteatose hepática (agora classificada como MASLD — doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica), após 48 semanas de uso do medicamento, 93% dos participantes apresentaram uma queda da gordura hepática para níveis considerados normais (<5%) — resultado impressionante que sugere uma reversão da inflamação hepática e do risco associado ao avanço para fibrose ou cirrose.
O mecanismo proposto para esse efeito envolve tanto a maior oxidação de ácidos graxos quanto a diminuição da entrada de glicose e lipídeos no fígado, promovida pela melhora da sensibilidade à insulina. Vale destacar que o acúmulo de gordura no fígado é um marcador precoce de disfunção metabólica, sendo frequentemente encontrado em indivíduos com obesidade central, resistência à insulina e síndrome metabólica. A ação da retatrutida nesse contexto pode, portanto, representar um avanço terapêutico relevante.
Comparações com a dieta cetogênica
Apesar da semelhança superficial entre os efeitos metabólicos da retatrutida e os da cetose induzida pela dieta, as diferenças são notáveis tanto em magnitude quanto em implicações sistêmicas. A dieta cetogênica clássica altera profundamente o metabolismo energético ao substituir glicose por corpos cetônicos como combustível principal. Esse estado metabólico afeta não apenas o fígado, mas também o cérebro, o tecido muscular, o pâncreas e o microbioma intestinal.
Por outro lado, a retatrutida simula apenas parcialmente esses efeitos, e sua ação depende da farmacocinética do medicamento e da adesão ao protocolo injetável semanal. Além disso, a cetose induzida por meio da dieta pode ser mantida indefinidamente com baixo custo e sem necessidade de fármacos, enquanto o uso prolongado da retatrutida pode acarretar efeitos adversos, como náusea, constipação, risco de pancreatite e possíveis alterações na função tireoidiana — efeitos já documentados em outras drogas da classe dos agonistas do GLP-1.
Outro ponto importante é que, na dieta cetogênica, especialmente nas versões com alto teor de gordura animal e sem vegetais (como a PKD), há efeitos anti-inflamatórios sistêmicos amplamente documentados, além de estabilização da glicemia, reversão da resistência à insulina e melhora de marcadores neurológicos e intestinais. Esses efeitos dificilmente são replicados por qualquer agente farmacológico isolado.
Implicações clínicas e considerações éticas
A retatrutida pode representar uma opção valiosa para pacientes com obesidade grave, diabetes tipo 2 descompensado e esteatose hepática, especialmente naqueles que não conseguem aderir a uma dieta cetogênica. Seu potencial de promover perda de peso significativa (até 24% em um dos ensaios) a coloca como uma das terapias mais eficazes no arsenal atual da medicina metabólica.
No entanto, o uso de medicamentos que simulam efeitos dietéticos não deve ser interpretado como substituto definitivo de mudanças de estilo de vida. A intervenção farmacológica pode ser vista como um “empurrão inicial”, mas não resolve, por si só, as causas subjacentes da disfunção metabólica. A dependência contínua de fármacos para manter cetose parcial e perda de peso pode levar à medicalização crônica de uma condição que, em muitos casos, é reversível com abordagens alimentares adequadas.
Também é necessário cautela ao interpretar os dados sobre cetose induzida por retatrutida. O aumento leve de corpos cetônicos não implica automaticamente em benefícios neuroprotetores, melhora de performance cognitiva ou efeito anticonvulsivante, como ocorre nas cetoses profundas induzidas terapeuticamente. A qualidade da cetose (profundidade e estabilidade) é um fator relevante que ainda não foi totalmente investigado nos estudos com essa droga.
Conclusão
A retatrutida inaugura uma nova geração de terapias hormonais que tentam reproduzir os efeitos metabólicos benéficos da cetose nutricional. Ainda que não atinja os mesmos níveis de cetose observados com dietas cetogênicas, seu uso resulta em maior oxidação de gordura e melhora de marcadores metabólicos, o que pode ter aplicações clínicas importantes no manejo da obesidade, do diabetes tipo 2 e da doença hepática gordurosa.
Contudo, a retatrutida não deve ser interpretada como uma “solução pronta” que substitui os benefícios amplos e duradouros de intervenções nutricionais adequadas. Ela representa mais uma ferramenta, não um atalho definitivo, e seu uso deve ser cuidadosamente avaliado dentro de uma abordagem mais ampla de saúde metabólica.
Fonte: https://www.mostly-fat.com/2025/05/is-retatrutide-ketosis-in-a-vial/