O câncer permanece uma das maiores ameaças à saúde global, com projeções alarmantes indicando um aumento superior a 70% na incidência até 2050. Frente à crescente demanda por estratégias terapêuticas inovadoras, o jejum intermitente (JI) tem atraído interesse por seu potencial de modular processos celulares cruciais como a autofagia — um mecanismo essencial para a manutenção da homeostase celular.
O que é autofagia?
A autofagia é um processo de reciclagem intracelular que permite às células degradarem componentes danificados, como proteínas malformadas e organelas comprometidas. Esse processo pode ocorrer de três formas principais: microautofagia, autofagia mediada por chaperona e macroautofagia, sendo esta última a mais estudada. Durante períodos de privação energética, como no jejum, a via AMPK é ativada e inibe o complexo mTORC1, permitindo a ativação de ULK1 e iniciando a cascata autofágica.
Autofagia e câncer: uma relação ambígua
No contexto oncológico, a autofagia apresenta uma dualidade funcional. Em fases iniciais da carcinogênese, atua como mecanismo de supressão tumoral, degradando organelas danificadas e prevenindo o acúmulo de proteínas mutantes. Genes como ATG5, ATG7 e BECN1 são essenciais nesse processo, e sua disfunção está associada a maior risco de tumores.
Por outro lado, em tumores estabelecidos, especialmente sob estresse metabólico, a autofagia pode favorecer a sobrevivência celular, fornecendo substratos energéticos por meio da degradação intracelular. Isso é observado em melanomas, carcinomas de mama e pulmão, entre outros, onde células tumorais utilizam a autofagia para manter a proliferação mesmo em ambientes hostis.
Modulação farmacológica da autofagia
Duas estratégias têm sido exploradas em terapias anticâncer: inibição ou indução da autofagia. Inibidores como cloroquina, bafilomicina e 3-metiladenina aumentam a sensibilidade de células tumorais à quimioterapia ao bloquear a degradação autofágica. Já fármacos como rapamicina e metformina atuam promovendo a autofagia por inibição do mTOR ou ativação do AMPK, favorecendo, em alguns contextos, a morte celular tumoral.
Além dos fármacos, compostos naturais como resveratrol e espermidina também induzem autofagia e apresentam efeitos promissores, sobretudo em modelos de câncer hepático e colorretal, por vias epigenéticas e metabólicas.
Jejum intermitente como indutor de autofagia
O JI é um padrão alimentar que alterna períodos de alimentação e jejum, sendo os modelos 16:8, 14:10, 5:2 e Eat–Stop–Eat os mais comuns. Durante o jejum, a redução de insulina e IGF-1, aliada à ativação de AMPK e inibição de mTOR, favorece a autofagia.
Estudos pré-clínicos demonstraram que o JI pode inibir vias pró-carcinogênicas como PI3K/Akt/mTOR, aumentar o estresse oxidativo seletivamente em células tumorais e sensibilizá-las à quimioterapia. Modelos animais mostraram que 48 horas de jejum combinadas a agentes como cisplatina ou oxaliplatina aumentam a eficácia antitumoral, efeito dependente da autofagia e da imunidade adaptativa.
Além disso, o JI reduz a expressão de transportadores de glicose (GLUT1/2) e o consumo de glicose por células cancerosas, interferindo diretamente na via glicolítica exacerbada típica do câncer (efeito Warburg). Em humanos, pequenos estudos mostraram melhora de marcadores inflamatórios, regulação de IGF-1 e bem-estar durante terapias oncológicas, especialmente em câncer de mama, gliomas e ginecológicos.
Riscos e limitações
Apesar das evidências promissoras, o JI não é isento de riscos. Em pacientes com câncer avançado, a perda de peso e a caquexia representam ameaças sérias. Até 80% dos pacientes com neoplasias como pulmão e pâncreas desenvolvem caquexia, e o jejum pode agravar esse quadro se não for cuidadosamente monitorado. Portanto, a adoção do JI deve considerar o estado nutricional, tipo e estágio do câncer, sendo contraindicado em casos de desnutrição severa.
Conclusão
O jejum intermitente, ao ativar vias de autofagia e regular o metabolismo tumoral, surge como uma estratégia adjuvante promissora no tratamento do câncer. Seus efeitos incluem a potencialização da resposta à quimioterapia, remodelação do microambiente tumoral e melhora da imunovigilância. No entanto, sua aplicação clínica requer protocolos bem definidos, monitoramento rigoroso e personalização de acordo com o perfil do paciente. Ensaios clínicos robustos são necessários para validar sua eficácia e segurança em larga escala.