Glóbulos Vermelhos Como Principais Consumidores de Glicose: Uma Nova Visão Sobre a Tolerância à Glicose em Grandes Altitudes

Em altitudes elevadas, diversos estudos epidemiológicos observaram que a incidência de diabetes e obesidade é significativamente menor. Esta associação já havia sido notada em diferentes espécies animais adaptadas a essas condições, como ratos, porcos tibetanos e até pássaros que vivem em grandes altitudes. Ainda assim, o mecanismo fisiológico que explica a melhoria no controle glicêmico nesses ambientes permaneceu, por muito tempo, um mistério.

Pesquisadores do Gladstone Institutes e da Universidade da Califórnia em São Francisco se debruçaram sobre essa questão, utilizando modelos experimentais em camundongos. Eles descobriram que a hipoxia — a condição de baixo teor de oxigênio típica de altitudes elevadas — sozinha é capaz de melhorar drasticamente a tolerância à glicose, de forma independente da ação da insulina.

A Hipoxia e a Tolerância à Glicose

Quando camundongos foram mantidos sob hipoxia (8% de oxigênio, equivalente a mais de 5.000 metros de altitude) por três semanas, seus níveis de glicose no sangue caíram rapidamente, estabilizando-se em valores muito inferiores aos dos camundongos mantidos em ambiente normóxico (21% de oxigênio). Essa queda não foi explicada por perda de peso ou por redução na ingestão alimentar. De maneira interessante, mesmo semanas após o retorno ao ambiente normóxico, a melhora na tolerância à glicose persistiu.

Além disso, a realização de testes de tolerância à insulina revelou que, paradoxalmente, a sensibilidade à insulina não melhorava durante a exposição à hipoxia — ela até diminuía levemente. Isso sugere que o principal fator de controle da glicose não era a resposta insulínica, e sim outra via metabólica.

Procurando o Sumidouro de Glicose

Para investigar qual tecido estava consumindo mais glicose durante a hipoxia, os cientistas utilizaram PET-CT, uma técnica de imagem que detecta o consumo de glicose por diferentes órgãos. Surpreendentemente, órgãos como cérebro, coração e tecido adiposo marrom explicaram apenas cerca de 30% do aumento no consumo de glicose observado. Restava descobrir onde estava o “sumidouro” principal da glicose.

O foco, então, voltou-se para os glóbulos vermelhos (hemácias), células abundantes no sangue cuja principal fonte de energia é a fermentação anaeróbica da glicose. Durante a hipoxia, a produção de glóbulos vermelhos aumenta consideravelmente — um fenômeno conhecido como eritrocitose — para melhorar o transporte de oxigênio. E essas novas células demonstraram ter uma capacidade muito maior de absorver glicose.

A Prova: Eritrocitose é Necessária e Suficiente

Para confirmar essa hipótese, os pesquisadores manipularam o número de glóbulos vermelhos de duas formas:

  • Redução de hemácias: ao realizar sangrias regulares em camundongos hipoxiados, eles impediram o aumento esperado das hemácias. Como resultado, a hipoglicemia que seria esperada foi substancialmente atenuada.
  • Aumento de hemácias: camundongos normóxicos que receberam transfusões de sangue rico em hemácias (vindas de animais adaptados à hipoxia) desenvolveram hipoglicemia semelhante àquela observada em animais em hipoxia.

Esses experimentos demonstraram que a quantidade de hemácias é determinante para o controle glicêmico em condições de baixo oxigênio.

Um Novo Papel para as Hemácias

Além do aumento no número de células, descobriu-se que as hemácias formadas durante a hipoxia apresentavam uma capacidade três vezes maior de absorver glicose do que as hemácias normais. Essa glicose não era usada para gerar energia de forma convencional, mas sim para produzir um composto chamado 2,3-difosfoglicerato (2,3-DPG), que facilita a liberação de oxigênio pelos glóbulos vermelhos aos tecidos.

Este mecanismo sugere que, em resposta à hipoxia, o organismo não apenas produz mais hemácias, mas também gera hemácias metabolicamente reprogramadas para consumir mais glicose e otimizar o fornecimento de oxigênio.

Aplicações Terapêuticas Promissoras

Para testar o potencial terapêutico dessa descoberta, os autores aplicaram duas estratégias:

  • Hipoxia controlada: camundongos com diabetes tipo 1 induzido (por destruição das células beta do pâncreas) tiveram sua hiperglicemia revertida ao serem expostos a ambientes hipoxêmicos.
  • Uso de HypoxyStat: um composto farmacológico desenvolvido para mimetizar a hipoxia (aumentando a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio) também foi capaz de normalizar a glicose sanguínea em camundongos obesos com hiperglicemia induzida por dieta.

Esses resultados abrem perspectivas para o desenvolvimento de terapias inovadoras contra a hiperglicemia e o diabetes, com foco em mecanismos completamente diferentes dos tratamentos atuais que giram em torno da insulina.

Relação com a Dieta Cetogênica

Embora o estudo central não tenha investigado diretamente o papel da dieta cetogênica, há evidências científicas paralelas que reforçam a importância da redução de glicose circulante para o controle metabólico. A dieta cetogênica, caracterizada pela alta ingestão de gorduras e muito baixa ingestão de carboidratos, induz um estado metabólico de cetose, onde a principal fonte de energia passa a ser os corpos cetônicos, e não a glicose.

Estudos bem controlados mostram que dietas cetogênicas podem reduzir significativamente a glicemia de jejum, melhorar a sensibilidade à insulina e diminuir a necessidade de medicamentos em pacientes com diabetes tipo 2. Um exemplo é o estudo publicado no Virta Health Study (Hallberg et al., 2018), que demonstrou reversão de diabetes tipo 2 em uma parcela significativa dos pacientes após 1 ano de adesão a uma dieta cetogênica supervisionada.

Assim como na hipoxia descrita no presente estudo, a dieta cetogênica cria um ambiente interno de baixa disponibilidade de glicose, obrigando o corpo a adaptar seu metabolismo. Embora o mecanismo da cetose seja diferente da expansão de massa eritrocitária observada com hipoxia, o princípio de “reduzir a carga de glicose circulante” é um elo comum.

Relação com o Jejum

Outra estratégia que compartilha efeitos similares é o jejum intermitente. Estudos como o publicado no New England Journal of Medicine (Patterson & Sears, 2017) mostram que práticas de jejum controlado reduzem significativamente os níveis de glicose no sangue, melhoram a sensibilidade à insulina e promovem remodelação metabólica favorável.

Durante o jejum, o corpo gradualmente esgota suas reservas de glicogênio hepático e passa a utilizar corpos cetônicos e ácidos graxos como principais fontes de energia. Essa redução forçada na disponibilidade de glicose mimetiza algumas adaptações vistas na hipoxia, como a maior eficiência metabólica celular e o menor estresse oxidativo.

Além disso, estudos indicam que o jejum pode promover melhorias na função hematopoiética e na renovação de células-tronco, o que pode, teoricamente, beneficiar também a qualidade da produção de glóbulos vermelhos, embora essa ligação específica com a eritrocitose hipoxêmica ainda não tenha sido diretamente estudada.

Assim, a associação de protocolos como jejum intermitente e dieta cetogênica a estratégias de modulação da hipoxia pode vir a compor uma abordagem ainda mais poderosa para o controle de distúrbios glicêmicos.

Considerações Finais

Esta pesquisa redefine o papel dos glóbulos vermelhos no metabolismo sistêmico da glicose. Em vez de serem apenas veículos de transporte de oxigênio, as hemácias surgem como consumidores dinâmicos de glicose, capazes de influenciar de forma significativa o equilíbrio glicêmico corporal, especialmente em condições de hipoxia.

Essa descoberta não apenas esclarece um mistério fisiológico antigo — por que populações de alta altitude apresentam melhor controle glicêmico — como também aponta novos caminhos terapêuticos para distúrbios metabólicos comuns e desafiadores como o diabetes. Paralelamente, a combinação de intervenções como dieta cetogênica, jejum intermitente e modulação da hipoxia pode oferecer abordagens complementares e sinérgicas no futuro manejo clínico da hiperglicemia.

Fonte: https://doi.org/10.1101/2025.04.24.650365

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