Etiologia do diabetes tipo 2: uma odisseia da medicina experimental


O diabetes tipo 2 tem sido tratado por décadas como uma doença crônica e progressiva, gerida com medicamentos e controle de sintomas. No entanto, evidências experimentais acumuladas ao longo de quase 20 anos indicam que essa visão precisa ser revisada. O pesquisador Roy Taylor, da Universidade de Newcastle, liderou uma série de estudos que culminaram na formulação da chamada hipótese dos ciclos gêmeos, hoje respaldada por ensaios clínicos e métodos de imagem sofisticados. Essa hipótese propõe que o diabetes tipo 2 se desenvolve como resultado de dois ciclos patológicos interligados e autoalimentados: um no fígado e outro no pâncreas, ambos induzidos pelo acúmulo crônico de gordura intraorgânica.

O ponto de partida é o excedente energético crônico, ou seja, a ingestão de mais calorias do que o corpo consegue utilizar ao longo do tempo. Essa energia em excesso é armazenada como gordura subcutânea até que essa capacidade de armazenamento seguro se esgote. A partir daí, o excedente lipídico começa a ser depositado em locais ectópicos, como o fígado e o pâncreas — órgãos que não são destinados ao armazenamento de gordura.

No fígado, a combinação entre resistência à insulina e alta disponibilidade de glicose e insulina estimula a lipogênese de novo — a conversão de carboidratos em gordura. Essa gordura acumulada eleva a resistência hepática à insulina, aumentando a produção de glicose endógena mesmo em jejum e levando a um aumento compensatório da insulina plasmática. Isso forma o primeiro ciclo: mais gordura hepática leva a mais glicose e mais insulina, o que por sua vez gera mais lipogênese e acúmulo adicional de gordura no fígado. Essa disfunção hepática também eleva os níveis de triglicerídeos circulantes, aumentando o fornecimento de gordura a outros tecidos, incluindo o pâncreas.

No pâncreas, a exposição crônica a triglicerídeos e intermediários lipídicos afeta especialmente as células beta, responsáveis pela secreção de insulina. A disfunção dessas células, em indivíduos geneticamente suscetíveis, compromete a resposta rápida à ingestão de glicose. Isso resulta em hiperglicemia pós-prandial e perpetua a estimulação da insulina, favorecendo ainda mais a deposição de gordura hepática. Assim se fecha o segundo ciclo: o acúmulo de gordura no pâncreas inibe a função beta, agravando o controle glicêmico, o que por sua vez realimenta o fígado com mais glicose e insulina.

Esses ciclos gêmeos — hepático e pancreático — explicam a progressão do diabetes tipo 2 a partir de um único fator ambiental modificável: o excedente calórico crônico. E mais importante: essa teoria prevê que a doença pode ser revertida se a gordura em excesso for removida dos órgãos afetados.

Estudos como o Counterpoint e o Counterbalance confirmaram essa previsão. Participantes com diagnóstico recente de diabetes tipo 2 foram submetidos a dietas muito baixas em calorias (~800 kcal/dia) durante 8 semanas. A perda de peso média de 15 kg foi suficiente para normalizar a glicemia, reduzir significativamente a gordura hepática e restaurar a função das células beta. Os níveis de triglicerídeos, insulina basal e produção hepática de glicose também voltaram ao normal. O efeito não foi transitório: após seis meses de dieta normocalórica de manutenção, a remissão persistiu na maioria dos casos.

Embora os estudos de Taylor não enfoquem um macronutriente isolado como causa, a literatura científica mais ampla identifica que o excesso de calorias oriundas de alimentos ultraprocessados ricos em carboidratos refinados e gorduras — particularmente quando combinados — é um dos principais determinantes da esteatose hepática e da resistência à insulina. Esses alimentos aumentam a lipogênese hepática, especialmente em indivíduos predispostos.

Como alternativa ou complemento à restrição calórica severa, a redução da ingestão de carboidratos — especialmente os de alto índice glicêmico — tem sido investigada como abordagem eficaz para o controle e remissão do diabetes tipo 2. Uma revisão sistemática com meta-análise de ensaios clínicos randomizados publicada no BMJ (Goldenberg et al., 2021) concluiu que dietas com baixo teor de carboidratos levam a maior perda de peso e taxas superiores de remissão do diabetes tipo 2 em comparação com dietas de controle, mesmo sem restrição calórica obrigatória. Em participantes que aderiram à dieta low carb por pelo menos seis meses, as taxas de remissão foram significativamente mais altas.

Além disso, uma meta-análise publicada no Diabetes, Obesity and Metabolism (Snorgaard et al., 2017) mostrou que dietas com redução de carboidratos melhoram o controle glicêmico (HbA1c) de forma mais eficaz do que dietas convencionais com baixo teor de gordura, especialmente nos primeiros seis meses de intervenção.

Essas evidências indicam que, ao reduzir a glicose circulante e a necessidade de secreção de insulina, a restrição de carboidratos pode quebrar a retroalimentação dos ciclos gêmeos ao diminuir a lipogênese hepática e a sobrecarga lipídica no pâncreas. Embora nem todos os estudos apresentem resultados sustentados no longo prazo, as dietas low carb representam uma alternativa validada à restrição calórica severa, com aplicação clínica potencial em contextos de atenção primária.

Em resumo, a hipótese dos ciclos gêmeos esclarece os mecanismos fisiopatológicos do diabetes tipo 2 a partir do acúmulo de gordura intraorgânica, causado por desequilíbrio energético crônico. A reversão da doença, já demonstrada por perda substancial de peso, pode ser viabilizada também por estratégias dietéticas de redução de carboidratos, conforme demonstrado por revisões sistemáticas de alto nível.

Referências:

  • Taylor R. Aetiology of type 2 diabetes: an experimental medicine odyssey. Diabetologia. 2025. https://doi.org/10.1007/s00125-025-06428-0
  • Goldenberg JZ et al. Efficacy and safety of low and very low carbohydrate diets for type 2 diabetes remission: systematic review and meta-analysis of published and unpublished randomized trial data. BMJ. 2021;372:m4743. https://doi.org/10.1136/bmj.m4743
  • Snorgaard O et al. Systematic review and meta-analysis of dietary carbohydrate restriction in patients with type 2 diabetes. Diabetes Obes Metab. 2017;19(3):285–293. https://doi.org/10.1111/dom.12826
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