É Benéfico Almejar Níveis de LDL-C Abaixo de 70 mg/dL? Uma Análise Crítica das Evidências


Ao longo das últimas duas décadas, as diretrizes para prevenção de doenças cardiovasculares (DCV) passaram a recomendar níveis cada vez mais baixos de colesterol LDL (LDL-C), especialmente para indivíduos considerados de alto risco. A meta de <70 mg/dL foi estabelecida com base na suposição de que existe uma relação linear entre níveis de LDL-C e risco cardiovascular. No entanto, um artigo recente publicado no Journal of Clinical Medicine contesta a validade dessa estratégia, revisando criticamente a literatura científica disponível.

Desafiando a Relação Linear entre LDL-C e Aterosclerose

A primeira crítica apontada pelos autores é a ausência de uma associação consistente entre níveis de LDL-C e progressão de placas ateroscleróticas em nível individual. Embora revisões sistemáticas e análises em nível de estudo tenham sugerido que a redução do LDL-C leva à regressão das placas, análises pós-hoc de ensaios clínicos randomizados mostram, em sua maioria, uma correlação fraca ou inexistente entre a redução de LDL-C e o volume de placa em pacientes individuais.

Estudos com tomografia coronariana também indicam que a presença de placas (calcificadas ou não) não segue um padrão sistemático com diferentes níveis de LDL-C. Indivíduos com escore de cálcio coronariano (CAC) zero — marcador robusto de baixo risco cardiovascular — mostraram taxas baixas de eventos cardiovasculares, independentemente dos níveis de LDL-C.

LDL-C e Eventos Cardiovasculares: Uma Ligação Frágil

Outro ponto abordado é a falta de associação entre níveis de LDL-C e eventos cardiovasculares em estudos bem controlados. Revisões sistemáticas que sustentam a recomendação de LDL-C <70 mg/dL baseiam-se amplamente em análises por meta-regressão de dados agregados, o que incorre em erro ecológico ao extrapolar dados de grupo para o nível individual.

Importantes ensaios clínicos de prevenção primária (como WOSCOPS, AFCAPS e JUPITER) e secundária (como CARE, LIPID, PROSPER e SPARCL) não encontraram uma relação linear clara entre redução de LDL-C e diminuição do risco cardiovascular. Além disso, em ensaios com meta explícita de atingir níveis específicos de LDL-C, como os estudos EMPATHY, HIJ-PROPER e TST, os resultados foram inconsistentes e afetados por vieses metodológicos, como baixo poder estatístico, alta taxa de abandono e encerramento precoce.

A Natureza Heterogênea do LDL-C

Os autores destacam que o LDL-C é uma medida agregada que não distingue entre partículas de diferentes tamanhos e densidades. As partículas pequenas e densas (sdLDL) são mais aterogênicas do que as partículas grandes e flutuantes (lbLDL). Além disso, marcadores como LDL oxidado e lipoproteína(a) [Lp(a)] são preditores mais fortes de risco cardiovascular do que o LDL-C total.

Importante: altos níveis de Lp(a) podem inflar artificialmente as medições de LDL-C, e diversos estudos mostram que o risco cardiovascular em indivíduos com LDL-C abaixo de 70 mg/dL está fortemente associado a níveis elevados de Lp(a), não ao LDL-C em si.

Efeitos Pleiotrópicos das Terapias Hipolipemiantes

As estatinas, por exemplo, reduzem não apenas o LDL-C, mas também marcadores inflamatórios como a proteína C-reativa (PCR). Esses efeitos anti-inflamatórios e antitrombóticos independem da redução de LDL-C e podem explicar boa parte do benefício cardiovascular observado. Em ensaios como JUPITER e IMPROVE-IT, o risco cardiovascular foi mais fortemente associado à redução da PCR do que à redução do LDL-C.

Inibidores de PCSK9, como alirocumabe e evolocumabe, também reduziram Lp(a) em estudos como FOURIER e ODYSSEY, sendo o maior benefício cardiovascular observado entre aqueles com Lp(a) basal elevado — e não necessariamente entre aqueles com maior redução de LDL-C.

Hipercolesterolemia, Longevidade e Função Imune

Contrariando a crença de que níveis elevados de LDL-C levam inevitavelmente à morte precoce, estudos demonstram que idosos com hipercolesterolemia familiar (HF) ou mesmo sem HF podem viver por décadas sem desenvolver DCV. Muitos têm risco reduzido de mortalidade por infecção ou câncer, o que pode ser explicado pela função imunológica protetora das lipoproteínas, especialmente o LDL-C.

A literatura também documenta que níveis muito baixos de LDL-C (<70 mg/dL) estão associados a maior mortalidade por todas as causas, especialmente por infecção e sepsis. Estudos recentes mostram uma relação em U entre LDL-C e mortalidade, com risco mínimo entre 100–189 mg/dL.

Conclusões

A revisão conclui que:

  • Não há base robusta para afirmar que níveis de LDL-C abaixo de 70 mg/dL resultem em benefício clínico adicional;
  • Os ensaios clínicos não foram desenhados para avaliar metas específicas de LDL-C, e os dados observacionais não sustentam uma relação linear entre LDL-C e risco cardiovascular;
  • Os benefícios das terapias hipolipemiantes podem ser devidos principalmente a seus efeitos anti-inflamatórios e antitrombóticos, e não à redução do LDL-C em si;
  • A insistência em reduzir agressivamente o LDL-C pode resultar em efeitos adversos significativos, como diabetes tipo 2, mialgia, tendinopatia e prejuízo cognitivo;
  • Em indivíduos com diabetes e LDL-C <70 mg/dL, observa-se aumento de mortalidade, especialmente em níveis <55 mg/dL;
  • A heterogeneidade das partículas LDL, o papel do Lp(a), da inflamação e da função imune devem ser considerados na avaliação de risco.

Portanto, metas extremamente baixas de LDL-C devem ser reconsideradas à luz de evidências mais complexas e nuançadas. Ensaios futuros focados em Lp(a) e marcadores inflamatórios como hs-CRP podem fornecer novas direções para estratégias de prevenção cardiovascular mais eficazes e seguras.

Fonte: https://doi.org/10.3390/jcm14103569

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