Por muitos anos, a dieta cetogênica foi alvo de controvérsias, especialmente entre profissionais da nefrologia. A associação entre consumo elevado de gordura, restrição de carboidratos e potencial sobrecarga renal levantava preocupações legítimas quanto à segurança do seu uso em pessoas com função renal comprometida. Este artigo, no entanto, propõe uma análise crítica e ponderada sobre as possibilidades e os riscos da aplicação da dieta cetogênica em pacientes com doença renal crônica (DRC), não apenas no contexto do emagrecimento, mas também como potencial intervenção terapêutica em casos de doença renal policística autossômica dominante (DRPAD).
Origem e aplicações clínicas da dieta cetogênica
A dieta cetogênica, caracterizada por um consumo muito baixo de carboidratos (geralmente abaixo de 50 g/dia) e alto teor de gordura, tem sua origem histórica no tratamento da epilepsia, especialmente em crianças com crises refratárias. Com o tempo, seu uso se expandiu para outras áreas, especialmente a obesidade, síndrome metabólica e doenças neurológicas. A capacidade dessa dieta de induzir a produção de corpos cetônicos como fonte alternativa de energia motivou sua aplicação em condições metabólicas específicas, incluindo a DRC.
Diferentes abordagens cetogênicas
Existem diversas formas de dietas cetogênicas, cada uma adaptada a contextos clínicos distintos. Entre elas, destacam-se:
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Dieta cetogênica clássica (relação gordura:carboidrato+proteína de 4:1), usada em epilepsia.
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Dieta cetogênica modificada (relação 3:1 a 1:1), com maior flexibilidade.
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Dieta com triglicerídeos de cadeia média, que permite maior ingestão de proteína e carboidrato.
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Dieta de Atkins modificada, com até 20 g de carboidrato por dia.
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Dieta com baixo índice glicêmico, mais permissiva.
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Jejum intermitente, promovendo cetose sem restrição calórica total.
Em contextos de obesidade e DRC, destacam-se as versões de baixa caloria (VLCKD, com até 800 kcal/dia) e isocalórica (ICKD), onde a ingestão energética é ajustada à taxa metabólica individual.
Dieta cetogênica e doença renal crônica
A preocupação tradicional dos nefrologistas com dietas ricas em proteínas não se aplica necessariamente às abordagens cetogênicas descritas neste artigo. As dietas cetogênicas não são hiperproteicas por definição. Na verdade, o consumo de proteínas é moderado (entre 0,8 a 1,2 g/kg de peso ideal) e o foco recai sobre a indução de cetose via consumo de gordura, não de proteína. Assim, os riscos de acidose metabólica e sobrecarga renal, embora possíveis, são menores do que se imaginava, especialmente em pacientes com DRC em estágios iniciais.
Estudos mostram que, em pacientes com DRC estágios 2 e 3, a dieta cetogênica pode levar à estabilização ou até melhora da taxa de filtração glomerular (eGFR), atribuída à perda de peso, melhor controle glicêmico e redução da pressão arterial. Em estágios mais avançados, os dados são mais escassos, mas pequenas coortes mostraram segurança e até indicação para pacientes em diálise que aguardam transplante.
Dieta cetogênica na DRPAD
No contexto da DRPAD, uma doença genética progressiva, os achados mais promissores envolvem a dieta cetogênica como forma de atuar na bioquímica celular dos cistos renais. Modelos animais demonstraram que células císticas têm metabolismo alterado e não conseguem utilizar corpos cetônicos de forma eficiente, o que reduz sua proliferação e favorece a regressão dos cistos. Ensaios clínicos preliminares com humanos mostraram segurança, adesão elevada e melhora em marcadores clínicos e subjetivos como pressão arterial, peso corporal e sensação de bem-estar. Estudos ainda em andamento pretendem confirmar esses achados em maior escala.
Implementação prática com alimentos naturais
Embora o uso de suplementos industrializados seja comum nas abordagens cetogênicas comerciais, os autores defendem fortemente a utilização de alimentos naturais em dietas cetogênicas para pacientes com DRC. Essa abordagem permite maior controle de micronutrientes críticos, como fósforo, potássio e sódio, evitando os aditivos comuns nos alimentos ultraprocessados. Exemplos de cardápios com alimentos naturais e baixo teor de carboidratos são apresentados no artigo, respeitando restrições renais sem abrir mão da cetose nutricional.
Cuidados e monitoramento
Apesar do potencial promissor, a dieta cetogênica em DRC exige monitoramento rigoroso. Avaliações frequentes da função renal, eletrólitos, estado de hidratação e composição corporal são indispensáveis. Suplementação com sais minerais e alcalinizantes pode ser necessária, mas deve ser personalizada com base em exames laboratoriais. A introdução de alimentos ricos em gordura e a redução abrupta de carboidratos podem desencadear sintomas transitórios (“gripe cetogênica”), que geralmente desaparecem após o período de adaptação metabólica.
Considerações finais
Esta revisão detalhada e crítica propõe que a dieta cetogênica, quando corretamente adaptada e supervisionada, não só pode ser segura para pacientes com DRC, como também pode oferecer benefícios clínicos importantes, principalmente na obesidade e na DRPAD. A grande lacuna ainda é a ausência de estudos de longo prazo e com amostras maiores, que permitam generalizar as recomendações. Enquanto isso, os autores encorajam nefrologistas e nutricionistas a considerar a cetogênica como ferramenta terapêutica viável, especialmente quando construída com alimentos naturais e personalizada à condição renal do paciente.