Ao longo das últimas décadas, a ciência tem tentado entender como fatores metabólicos influenciam o desenvolvimento de diferentes tipos de câncer. Um estudo recente, conduzido com mais de meio milhão de pessoas na Suécia, trouxe à tona uma descoberta surpreendente: níveis mais elevados de certos lipídios no sangue estão associados a um menor risco de desenvolver cânceres hematológicos, como leucemias e linfomas.
Esse achado desafia uma antiga narrativa que coloca o colesterol como vilão absoluto da saúde. Na verdade, os resultados da pesquisa indicam que níveis mais altos de colesterol total (TC), lipoproteína de baixa densidade (LDL-C), lipoproteína de alta densidade (HDL-C) e apolipoproteína A-I (ApoA-I) podem estar ligados a uma menor incidência desses tipos de câncer.
O que o estudo analisou
O estudo, realizado com dados da coorte sueca AMORIS, acompanhou 563.188 pessoas por mais de 30 anos. Os pesquisadores analisaram amostras de sangue coletadas entre 1985 e 1996 e observaram a relação entre biomarcadores metabólicos — como glicose, colesterol e apolipoproteínas — e o aparecimento de câncer hematológico ao longo do tempo.
Para garantir que os resultados não fossem distorcidos por processos inflamatórios pré-existentes ou pelo início silencioso da doença (o que chamamos de causalidade reversa), os cientistas eliminaram os primeiros cinco anos de seguimento da análise. Além disso, ajustaram os dados para fatores como doenças autoimunes, infecções e outros marcadores de inflamação.
Resultados relevantes
Os dados mostraram que um aumento de um desvio padrão nos níveis de colesterol total estava associado a uma redução de 7% no risco de qualquer câncer hematológico. O LDL-C teve uma associação semelhante, com 6% de redução, enquanto o HDL-C apresentou uma queda de 8% no risco. Já a ApoA-I, principal proteína do HDL-C, mostrou uma redução de 4%.
Essas associações também foram observadas de forma específica em alguns subtipos da doença. Por exemplo, o HDL-C mostrou uma forte ligação com menor risco de leucemia mieloide aguda, enquanto o colesterol total e o LDL-C estavam ligados a menor risco de mieloma múltiplo. Para o linfoma não-Hodgkin, níveis mais altos de TC, triglicerídeos e ApoA-I se mostraram protetores.
O papel do colesterol na imunidade
Mas como o colesterol pode proteger contra o câncer? Embora o mecanismo exato ainda não esteja completamente compreendido, o estudo destaca algumas possibilidades. O HDL-C e a ApoA-I possuem propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes. Níveis baixos dessas substâncias podem comprometer a resposta inflamatória natural do corpo, favorecendo a proliferação anormal das células no sangue e na medula óssea.
Além disso, o colesterol é essencial para a estrutura das membranas celulares e o funcionamento do sistema imunológico. Níveis baixos podem afetar a atividade de células de defesa, como os linfócitos T e macrófagos. Outro ponto interessante levantado é que um LDL-C muito baixo pode levar à superexpressão de receptores de LDL nas células sanguíneas, facilitando a proliferação de células malignas.
Considerações finais
Este estudo reforça a necessidade de uma reavaliação do papel dos lipídios na saúde humana. Embora tradicionalmente associados ao risco cardiovascular, os lipídios desempenham funções vitais em muitos outros processos biológicos, inclusive na prevenção de certos tipos de câncer.
É importante destacar que os autores não sugerem que níveis elevados de colesterol devam ser incentivados indiscriminadamente. Mas sim que os valores de referência e as estratégias terapêuticas precisam levar em conta uma visão mais ampla, que considere os efeitos complexos e multifacetados dos lipídios no organismo.
Essas descobertas também reforçam a importância de avaliações clínicas individualizadas. O colesterol, longe de ser um inimigo universal, pode desempenhar um papel protetor em contextos específicos — e a oncologia é, agora, um novo território para essa discussão.