Ao longo da história evolutiva, o ser humano desenvolveu uma relação íntima com a carne como parte essencial da dieta. Em um estudo publicado no periódico Human Evolution (1998), Henneberg e colaboradores exploraram evidências anatômicas, fisiológicas e parasitológicas que sugerem que Homo sapiens não é apenas um consumidor eventual de carne, mas um carnívoro habitual — adaptado biologicamente a esse tipo de alimentação.
O papel da carne na dieta ancestral
A dieta atual dos humanos inclui grande quantidade de produtos de origem animal, mas a origem evolutiva desse padrão alimentar ainda suscita debates. Fósseis não preservam intestinos e, portanto, análises diretas sobre evolução do trato digestivo dos hominídeos não são possíveis. Indiretamente, no entanto, estudos morfológicos sugerem que os australopitecíneos — hominídeos ancestrais — possuíam abdômen proporcionalmente maior, possivelmente adaptado a dietas mais ricas em vegetais fibrosos. Em contrapartida, tanto humanos modernos quanto fósseis de Homo arcaico exibem indícios de intestinos menores e mais compactos, sugerindo uma dieta de maior densidade energética, compatível com maior consumo de carne.
Anatomia e fisiologia digestiva humana: mais próxima dos carnívoros
Comparações entre o trato gastrointestinal humano e o de outros mamíferos reforçam a ideia de adaptações à carne. Animais herbívoros, como bovinos e cavalos, apresentam intestinos longos e volumosos para fermentação e digestão de fibras vegetais, com proporções intestinais que podem atingir 20 vezes o comprimento corporal. Já em humanos, essa proporção é de aproximadamente 5:1 — muito próxima a de carnívoros típicos como cães e gatos.
Além da anatomia, a fisiologia também aponta para adaptações ao consumo de carne: humanos absorvem preferencialmente ferro derivado de heme — presente em alimentos animais —, enquanto herbívoros dependem da absorção de ferro iônico de origem vegetal. Essa eficiência na extração de nutrientes concentrados sugere que a evolução humana moldou um trato digestivo preparado para dietas ricas em proteína animal e gordura.
Parasitas como evidência de hábitos alimentares
Um dado curioso destacado no estudo diz respeito aos parasitas intestinais. Certos parasitas da família Taeniidae, como Taenia saginata e Taenia solium, usam exclusivamente os humanos como hospedeiros definitivos. Esses parasitas têm ciclos de vida diretamente relacionados à ingestão de carne — em especial carne de porco e bovina — e são extremamente específicos para nossa espécie. Curiosamente, primatas próximos, como chimpanzés, que ocasionalmente consomem carne, não são hospedeiros desses parasitas, indicando que a frequência e a regularidade do consumo de carne no Homo sapiens foram fatores determinantes para essa associação biológica.
Essa relação íntima com os parasitas carnívoros revela não apenas hábitos alimentares, mas também padrões de exposição antigos e consistentes, sugerindo que o consumo de carne foi uma prática regular por longos períodos da evolução humana.
Eficiência energética e dieta
Outro ponto relevante abordado no estudo foi a comparação das necessidades energéticas em relação ao peso corporal. Animais carnívoros tendem a consumir menos energia por quilograma de peso corporal do que herbívoros. Nesse aspecto, os humanos novamente se aproximam do padrão carnívoro: nossa demanda energética ajustada ao peso é muito menor do que a dos grandes herbívoros e semelhante à de predadores como cães e felinos.
Esse padrão reflete adaptações a um regime alimentar que fornece alta densidade calórica e permite maior economia digestiva — característica importante para espécies que evoluíram em ambientes onde o acesso a recursos energéticos era variável e, por vezes, escasso.
Conclusões e implicações evolutivas
A soma de evidências anatômicas, fisiológicas e parasitológicas permite aos autores afirmar que os humanos modernos estão biologicamente adaptados a dietas ricas em carne. Essa adaptação não ocorreu de forma recente: análises químicas de fósseis mostram que australopitecíneos robustos e primeiros representantes do gênero Homo já apresentavam padrões isotópicos indicativos de significativa ingestão de proteína animal.
Portanto, a relação entre humanos e carne ultrapassa a mera preferência cultural: trata-se de uma especialização biológica que moldou nosso metabolismo, nosso trato digestivo e até nossas relações ecológicas, como a associação com parasitas específicos. A adaptação à carne aparece, assim, como um traço profundo de nossa história evolutiva.
