Quando você lê no rótulo “fonte de fibras”, provavelmente pensa em algo vindo de alimentos naturais: vegetais, frutas, grãos integrais. Mas, na indústria, uma parte importante dessa “fibra” pode ser, literalmente, derivada de madeira – como a celulose microcristalina (MCC) – ou até de casca de árvore moída.
Do ponto de vista regulatório, isso é permitido. Do ponto de vista sensorial, muitas vezes passa despercebido. Mas do ponto de vista nutricional, faz sentido apostar nesse tipo de fibra “inerte” que quase não é aproveitada pelo organismo?
Vamos olhar para os dados.
O que é celulose microcristalina – e por que a indústria adora
A celulose microcristalina (MCC) é obtida, em grande parte, de polpa de madeira purificada. Ela é usada como:
- agente de corpo e textura;
- estabilizante e espessante;
- substituto de gordura em alguns produtos;
- antiaglomerante (evitar que raleados ou pós grudem).
Reguladores como a FDA enquadram fibras como a celulose (isolada ou sintética) dentro da definição de “dietary fiber” desde que apresentem algum efeito fisiológico benéfico (como melhorar o trânsito intestinal, reduzir colesterol ou glicemia, etc.).
Ou seja: a mesma substância usada como aditivo tecnológico pode aparecer no rótulo como “fibra alimentar”, desde que atenda aos critérios regulatórios.
Experimento 1 – Leite achocolatado com celulose microcristalina
Um estudo avaliou o efeito da MCC em leite achocolatado, testando concentrações de 0,05% a 0,30% (em volume/peso). Os pesquisadores mediram:
- viscosidade;
- sedimentação do cacau durante o armazenamento;
- cor;
- aceitação sensorial pelos consumidores.
Resultado central:
Leite achocolatado com 0,05–0,10% de MCC teve menor sedimentação e não apresentou diferença significativa de aceitação global em relação ao controle.
Concentração de 0,10% foi recomendada, pois melhorou a estabilidade sem prejudicar a aceitação.
Em termos práticos: uma fibra derivada de madeira foi adicionada ao leite achocolatado, melhorou a estabilidade e o consumidor praticamente não percebeu.
Experimento 2 – Queijo cheddar ralado com mistura de amido + celulose
Outro trabalho avaliou antiaglomerantes em queijo cheddar ralado. Entre os agentes estudados estava uma mistura com 80% amido de batata / 20% celulose, aplicada em diferentes níveis (1–5% em peso).
Os autores testaram:
- aparência (pó visível nos fios de queijo);
- textura e derretimento;
- aceitação por consumidores (vários testes com diferentes usos do queijo).
Resultados principais:
- A mistura com 80% amido + 20% celulose e outros antiaglomerantes podem ser usados até ~3% (peso/peso) com efeito mínimo na percepção do consumidor;
- Acima disso, sobretudo em concentrações maiores, o pó torna-se visualmente mais evidente e começa a prejudicar aparência e aceitação.
Mais uma vez, um ingrediente à base de celulose entra em um alimento comum (queijo ralado) e o consumidor quase não nota – até certo limite de uso.
Experimento 3 – Biscoitos com gordura substituída por celulose microcristalina
Em biscoitos tipo “shortcrust”, pesquisadores testaram a substituição de 25% a 75% da gordura por MCC (em gel ou pó), além de adicionar psyllium em algumas formulações.
Os achados:
- Substituir gordura por MCC altera textura e propriedades físicas, como espessura, dureza e volume;
- Quando 25% da gordura é substituída por MCC em pó, a qualidade sensorial ainda é considerada aceitável e a MCC é apontada como o substituto de gordura mais eficiente entre as opções testadas;
- Substituições mais agressivas (50–75%) e adição extra de psyllium pioram a qualidade sensorial de forma mais marcante.
Conclusão prática: até um certo limite, é possível “trocar gordura por fibra de madeira” em biscoitos sem que o consumidor rejeite o produto.
Experimento 4 – Pão com fibras purificadas (incluindo celulose microcristalina)
Um estudo clássico com pães de trigo avaliou o efeito de fibras purificadas de diferentes origens, incluindo celulose microcristalina, sobre:
- reologia da massa (absorção de água, tenacidade, extensibilidade);
- volume do pão;
- textura e cor da migalha;
- avaliação sensorial dos pães.
Resultados relevantes:
- A adição de fibras aumenta a absorção de água e altera a estrutura da massa;
- Em geral, até ~2% de fibra (incluindo MCC) pode ser adicionada sem deteriorar a palatabilidade em relação ao pão branco controle;
- Em níveis mais altos (~5%), muitas vezes são necessários outros aditivos para compensar os efeitos negativos na textura e no volume.
Ou seja: microcrystalline cellulose e outras fibras purificadas podem ser “injetadas” no pão em níveis modestos sem que o consumidor note grande diferença.
Experimento 5 – Pão sem glúten com farinha de casca de árvore (olmo)
Aqui chegamos mais perto da imagem literal de “casca de árvore no alimento”.
Pesquisadores chineses testaram farinha de casca de olmo (Elm – Ulmus pumila L.) como substituto do glúten em pão sem glúten à base de milheto.
O estudo mostrou que:
- a farinha de casca de olmo melhora as características de gelatinização e as propriedades reológicas da massa;
- aumenta o volume específico do pão e reduz sua dureza;
- em proporção ótima (~15% de farinha de casca, com ajuste de água), melhora textura e estrutura interna, resultando em pão sem glúten mais aceitável.
Note o padrão: casca de árvore é moída, processada, entra como ingrediente “tecnológico”, ajuda na estrutura – e o pão continua sendo vendido como alimento “melhorado”, não como “ração de casca”.
O que esses estudos têm em comum?
Em todos os exemplos acima, algo parecido acontece:
- Fibras purificadas ou derivados de casca/madeira são adicionados à formulação (MCC, mistura amido + celulose, farinha de casca de olmo etc.);
- Há um objetivo tecnológico:
- reduzir sedimentação (leite achocolatado),
- evitar grumos (queijo ralado),
- substituir gordura (biscoitos),
- melhorar estrutura de pão comum ou sem glúten;
- Os pesquisadores verificam até que ponto o consumidor aceita o produto sem perceber algo “errado” na textura, na aparência ou no sabor.
Em resumo: é absolutamente possível colocar “fibra de madeira” ou “fibra de casca de árvore” em alimentos comuns sem que o consumidor perceba sensorialmente, desde que a dose seja tecnicamente bem ajustada.
Mas isso nutre alguma coisa?
Do ponto de vista regulatório, fibras como a celulose podem ser contabilizadas como “fibra dietética” desde que demonstrem algum efeito fisiológico benéfico (por exemplo, aumento da frequência de evacuações, redução de glicemia ou colesterol).
Do ponto de vista nutricional e clínico, porém, é importante distinguir:
- Fibra intrínseca de alimentos minimamente processados – vem acompanhada de micronutrientes, fitoquímicos, proteína, água estruturada, matriz alimentar complexa (vegetais, frutas, tubérculos, leguminosas, etc.);
- Fibras isoladas e modificadas usadas como ingredientes – celulose microcristalina, fibras refinadas, polidextrose, arabinoxilana isolada, etc.
Uma revisão recente sobre fibras isoladas e modificadas em produtos de panificação destacou:
- que essas fibras são úteis para ajustar textura, volume e umidade,
- que podem ajudar a reduzir carboidratos disponíveis e aumentar o teor de fibra declarado,
- mas que os efeitos em saúde dependem muito do tipo de fibra, da dose e do contexto alimentar, e muitas vezes são diferentes de comer alimentos naturalmente ricos em fibra.
Fonte: Sempio et al., 2023/2024 – “Impact of isolated and chemically modified dietary fiber on bakery products / Closing the Fibre Gap”
Em outras palavras:
Fibra purificada é tratada como ferramenta tecnológica e, às vezes, como meio de “preencher a meta de gramas de fibra no rótulo”. Isso não é a mesma coisa que reconstruir o padrão alimentar de alguém.
“Fibra que não é absorvida”: isso é bom ou ruim?
Toda fibra é, por definição, não digerida no intestino delgado. O que muda é:
- Solubilidade e fermentabilidade: algumas fibras são fermentadas pela microbiota, produzindo ácidos graxos de cadeia curta (butirato, acetato, propionato), com efeitos metabólicos importantes;
- Insolubilidade e baixa fermentabilidade: fibras como a celulose tendem a atuar mais como “volume mecânico”, aumentando o bolo fecal e acelerando o trânsito, mas com menor produção de metabólitos benéficos em comparação a fibras fermentáveis.
Estudos em pães enriquecidos com fibras insolúveis mostram que altas doses podem prejudicar textura e estrutura, exigindo ajustes de formulação e nem sempre mantendo boa aceitação sensorial.
Assim, quando alguém justifica a adição de MCC ou farinha de casca de árvore dizendo apenas “é fibra, logo é saudável”, está misturando:
- uma categoria regulatória (pode contar como fibra no rótulo), com
- uma promessa de benefício real, que depende de tipo de fibra, quantidade e, principalmente, do conjunto da dieta.
O experimento conceitual da casca de árvore
“Se eu moer casca de árvore, colocar no alimento e ninguém perceber sensorialmente, eu criei um alimento melhor – ou apenas um produto com mais ‘enchimento’ e marketing de fibra?”
Os estudos citados anteriormente mostram que sim, é possível adicionar uma fibra de origem lenhosa ou de casca, ajustar tecnicamente a textura, e manter boa aceitação sensorial.
O que esses trabalhos não mostram é que isso, por si só, transforma um ultraprocessado em um alimento metabolicamente protetor.
Então, vale a pena consumir esse tipo de fibra?
Depende da pergunta que você está tentando responder.
Se a pergunta é tecnológica:
- “Como melhorar textura, estabilidade e vida de prateleira de um produto?” → MCC, outros tipos de celulose e farinhas de casca podem ser ferramentas úteis para a indústria.
Se a pergunta é de saúde pública / clínica:
- “Como melhorar a saúde metabólica, intestinal e inflamatória das pessoas?” → Os melhores dados ainda apontam para padrões alimentares completos, e não para a adição pontual de uma fibra purificada e pobre em nutrientes.
Na prática:
- Comer alimentos minimamente processados (vegetais, frutas, tubérculos, leguminosas, ovos, carnes, vísceras, laticínios integrais etc.) oferece mais do que fibra: densidade nutricional, proteínas de alta qualidade, vitaminas, minerais e uma matriz alimentar complexa;
- Comer produtos cheios de aditivos + “fibra de madeira” pode até cumprir uma meta regulatória de gramas de fibra no rótulo, mas não resolve o problema de base da dieta.
Conclusões
- Os estudos confirmam: é possível adicionar celulose microcristalina e até farinha de casca de árvore a alimentos sem que o consumidor perceba, desde que a formulação seja bem ajustada.
- Do ponto de vista sensorial, essas fibras “tecnológicas” funcionam – estabilizam, engrossam, dão volume, substituem gordura.
- Do ponto de vista nutricional, são fibras pouco fermentáveis, com baixo valor biológico próprio e ganhos de saúde bem mais modestos se comparados a mudanças reais no padrão alimentar.
- Ver “fibra” no rótulo não garante que se trata de um alimento de alta qualidade; é preciso olhar contexto, grau de processamento e densidade nutricional.
- Se o objetivo é saúde metabólica de longo prazo, faz mais sentido priorizar comida de verdade e usar a presença de celulose/MCC e similares apenas como um sinal de que você está lidando com um produto formulado para “funcionar bem em prateleira”, não necessariamente no seu metabolismo.
