Quando estar magro não garante saúde
Ao ouvir falar em coração e peso, muita gente pensa que “quanto mais magro, melhor”. A obesidade é reconhecida há décadas como um fator que aumenta o risco de desenvolver doença nas artérias do coração. Pessoas com excesso de peso têm, com mais frequência, pressão alta, diabetes e alterações metabólicas que favorecem o infarto.
Mas, entre pessoas que já têm doença arterial coronariana, alguns estudos observaram um cenário diferente: dentro desse grupo doente, quem tinha IMC mais alto parecia viver mais tempo do que quem tinha IMC mais baixo. Esse achado recebeu o nome de “paradoxo da obesidade” e gera muita confusão.
O estudo de Shirahama e colaboradores, publicado em 2025 na revista Clinical Nutrition, procurou entender melhor esse paradoxo em pacientes submetidos a angioplastia, tentando separar peso, nutrição e inflamação de forma mais detalhada.
O que o estudo avaliou
Os pesquisadores acompanharam 1.252 pacientes com doença arterial coronariana em um hospital no Japão, entre 2007 e 2017. Todos fizeram uma angioplastia e nenhum tinha histórico de câncer (para evitar que emagrecimento por outras doenças graves confundisse os resultados).
Essas pessoas foram separadas em dois grupos:
- IMC < 25 kg/m²
- IMC ≥ 25 kg/m²
O objetivo principal foi observar, ao longo de 5 anos, quantos pacientes morreriam em cada grupo e de que forma fatores como estado nutricional, massa muscular e inflamação poderiam influenciar esse risco.
Para isso, o estudo usou:
- Índices nutricionais simples, calculados com albumina e linfócitos do sangue, peso e altura (PNI e GNRI).
- Estimativa de massa magra e gordura corporal, obtida por fórmulas.
- Marcadores inflamatórios do hemograma (NLR, PLR e MLR).
O que foi encontrado
1. Dentro desse grupo de doentes, quem tinha IMC mais baixo morreu mais
Ao final dos 5 anos de acompanhamento:
- Houve 73 óbitos no total.
- 56 mortes ocorreram no grupo com IMC < 25.
- 17 mortes ocorreram no grupo com IMC ≥ 25.
As curvas de sobrevivência mostraram que, entre esses pacientes já doentes, quem tinha IMC mais baixo teve pior evolução. Quando o IMC foi analisado como número contínuo, o risco formou uma curva em “U”: o risco pareceu menor em torno de um IMC moderado (por volta de 25–30 kg/m²) e maior em valores muito baixos ou muito altos.
Isso não significa que ser obeso seja saudável. Significa que, nesse contexto específico de doença coronariana instalada, estar muito magro pode vir acompanhado de outros problemas importantes.
2. Magreza veio junto de pior nutrição e menos massa muscular
Ao comparar os índices nutricionais, os autores observaram que:
- O grupo com IMC < 25 tinha PNI e GNRI significativamente mais baixos.
- IMC mais alto se associou, em média, a melhores índices nutricionais.
- Maior massa magra estimada esteve ligada a menor risco de morte, mesmo após ajuste para outros fatores.
Em outras palavras, muitos pacientes com IMC mais baixo não eram “magros saudáveis”. Eles apresentavam sinais de desnutrição, perda de massa muscular (sarcopenia) e fragilidade. Esses fatores podem deixar o organismo menos preparado para lidar com infartos, internações e procedimentos invasivos.
Assim, neste estudo, o que apareceu por trás do paradoxo foi, principalmente, um “paradoxo da desnutrição”: pessoas aparentemente magras, mas com reservas corporais pobres, evoluindo pior.
3. Inflamação é importante, mas não explica tudo
Os marcadores de inflamação (NLR, PLR e MLR) não mostraram grandes diferenças entre os grupos de IMC. Apenas o MLR foi um pouco maior no grupo sem obesidade.
Por outro lado, olhando todos os pacientes juntos, a NLR se destacou como um marcador útil para identificar quem tinha risco maior de morrer em 5 anos. Isso reforça que a inflamação sistêmica segue sendo relevante em doença coronariana, mas, neste trabalho, não foi ela que explicou a pior evolução dos pacientes magros.
Ser magro não é sinônimo automático de saúde
A principal mensagem prática do artigo é que estar magro, sozinho, não garante boa saúde, principalmente em pessoas com doença coronariana já estabelecida.
Neste estudo:
- Pacientes com IMC menor tiveram, com mais frequência, nutrição pior, menor massa muscular e maior fragilidade.
- Esses elementos, e não a magreza em si, parecem ter contribuído para o risco mais alto de morte.
Ou seja, há uma diferença entre:
- uma pessoa magra com boa alimentação, boa massa muscular e metabolismo preservado,
- e uma pessoa magra porque perdeu peso por doença, está desnutrida e fraca.
O estudo lida justamente com esse segundo cenário, muito comum em cardiopatas mais graves.
Obesidade continua sendo um problema, não uma proteção
Mesmo que, nesse grupo específico, pacientes com IMC moderadamente mais alto tenham apresentado melhor sobrevivência, isso não transforma a obesidade em algo protetor ou desejável.
Diversas evidências anteriores mostram com consistência que:
- excesso de peso aumenta a chance de desenvolver doença arterial coronariana;
- obesidade está ligada a diabetes tipo 2, hipertensão, dislipidemia e doença hepática gordurosa, entre outras condições;
- a longo prazo, isso se traduz em maior risco de infarto, AVC e mortalidade cardiovascular.
O que o estudo de Shirahama et al. sugere é que, uma vez que a doença cardíaca está instalada, o simples fato de ter IMC baixo, se isso vier junto de desnutrição e perda de massa muscular, pode ser um sinal de risco ainda maior.
Portanto:
- obesidade não deve ser vista como proteção,
- mas magreza às custas de massa muscular e reservas nutricionais ruins também não é objetivo saudável.
A leitura equilibrada é que o cuidado deve ser direcionado para:
- preservar e recuperar boa nutrição,
- manter ou reconstruir massa muscular,
- controlar inflamação e fatores de risco clássicos (pressão, glicemia, tabagismo etc.),
- e não apenas perseguir um número de IMC isolado.
Limitações e cautelas
O próprio artigo reconhece pontos importantes:
- Trata-se de um estudo observacional de um único centro, que não prova causa e efeito.
- As medidas (IMC, PNI, GNRI, marcadores inflamatórios) foram feitas apenas na admissão, podendo ser influenciadas pelo quadro agudo.
- A composição corporal foi estimada, não medida diretamente por exames como DXA ou bioimpedância.
- Não há dados detalhados sobre dieta, atividade física e outros hábitos, que também interferem muito na evolução clínica.
- O número de mortes (73) é relativamente pequeno, o que limita algumas análises.
Por isso, os autores defendem que os resultados devem ser confirmados em estudos maiores, com medidas diretas de massa magra e gordura, e com avaliação mais completa do estilo de vida.
Resumo
Em pacientes com doença arterial coronariana submetidos a angioplastia:
- Magreza associada a desnutrição e baixa massa muscular não foi um bom sinal e se ligou a maior mortalidade.
- Índices nutricionais (como PNI e GNRI) e um marcador de inflamação (NLR) ajudaram a identificar melhor quem corria mais risco, mais do que o IMC sozinho.
- A obesidade continua sendo fator de risco para desenvolver a doença, e o estudo não sugere que engordar seja uma meta de saúde.
- O recado central não é “ser obeso faz bem”, mas sim: “apenas estar magro não basta; nutrição adequada e massa muscular preservada importam muito para o coração doente”.
Fonte: https://doi.org/10.1016/j.clnu.2025.11.024
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