No fim dos anos 1990, muitos corredores de longa distância buscavam desempenho e definição corporal comendo pouca gordura. A ideia parecia lógica: reduzir gordura na dieta para “ficar mais leve” e, ao mesmo tempo, manter muitos carboidratos para sustentar o treino. O problema é que, no corpo real, treino intenso não exige apenas combustível — ele também cobra organização do sistema imune, que precisa lidar com estresse fisiológico, inflamação transitória do esforço e recuperação.
Uma referência clássica em fisiologia do exercício descreve como o exercício mobiliza células de defesa (como células NK) durante a atividade e como respostas pós-esforço podem variar conforme intensidade e contexto. Pedersen & Hoffman-Goetz, 2000 (Physiological Reviews).
O que a Universidade at Buffalo reportou em 1999
Em 22 de maio de 1999, pesquisadores da University at Buffalo (UB) divulgaram resultados apresentados em um simpósio internacional, sugerindo que uma dieta com teor muito baixo de gordura (≈17% das calorias) poderia comprometer a resposta imune em corredores que treinavam cerca de 40 milhas por semana, enquanto dietas com ≈32% e ≈41% de gordura teriam mantido a imunidade mais preservada (e melhorado alguns componentes).
O desenho descrito no comunicado foi relativamente simples de entender: os atletas passaram por períodos de 4 semanas em dietas com diferentes teores de gordura (17% / 32% / 41%), mantendo a proteína em torno de 15%, e os carboidratos completando o restante. Ao final de cada fase, foram coletados exames antes e depois de um teste de endurance, avaliando marcadores como leucócitos, citocinas e cortisol. UB, 1999.
O que chamou mais atenção nos resultados
1) Células NK: uma “linha de frente” que pareceu responder ao teor de gordura
O comunicado relata que as células natural killer (NK) — um tipo de leucócito associado à defesa inicial contra infecções — ficaram mais do que dobradas após a dieta com maior teor de gordura, em comparação à fase de dieta muito pobre em gordura. UB, 1999.
Esse achado conversa com o artigo revisado por pares do mesmo grupo, que comparou respostas imunes em corredores após 4 semanas em dietas de 17% (baixa), 32% (média) e 41% (alta) de gordura e mediu respostas antes e após exercício máximo. Venkatraman et al., 1997 (Medicine & Science in Sports & Exercise).
2) PGE2 e inflamação: sinal de “pior cenário” na dieta mais pobre em gordura
Outro ponto destacado foi que, após o teste de endurance, os níveis de PGE2 (prostaglandina relacionada a processos inflamatórios) aumentaram e foram maiores quando os corredores estavam na dieta de menor gordura. UB, 1999.
Quando os dados saem do comunicado e entram na literatura revisada por pares
Além do trabalho de 1997, o grupo publicou análise sobre citocinas plasmáticas em corredores sob diferentes níveis de gordura alimentar, relatando que elevar a gordura da dieta aumentou o tempo de corrida até a exaustão e não mostrou efeitos adversos em citocinas como IL-2 e citocinas pró-inflamatórias medidas naquele protocolo. Venkatraman et al., 1998 (Med Sci Sports Exerc).
E, em uma revisão clínica posterior, a própria autora discutiu que atletas frequentemente treinam muito, às vezes comem menos do que gastam e, com isso, podem reduzir ingestão de gorduras e micronutrientes — um cenário em que o sistema imune pode ficar mais vulnerável. Venkatraman, 2000 (Sports Medicine).
O que isso significa, em termos práticos, sem exageros
O conjunto dessas fontes permite uma leitura bem pé no chão:
- O problema não foi “comer gordura demais” por si só (até ~41% neste contexto), e sim reduzir gordura a níveis muito baixos em atletas com alta carga de treino, onde alguns marcadores imunológicos pareceram piorar. UB, 1999; Venkatraman et al., 1997.
- Em termos humanos: para esse perfil de corredor, o organismo pode interpretar uma dieta “seca demais” como mais um estressor, somando pressão ao que já vem do treino e da recuperação.
Limitações
Para manter fidelidade ao que foi realmente medido:
- O comunicado da UB fala em maior “suscetibilidade” a infecções, mas o que ele descreve diretamente são marcadores laboratoriais, não um acompanhamento clínico registrando infecções ocorridas. UB, 1999.
- O número de atletas foi pequeno (14 no relato do comunicado), e as fases dietéticas duraram semanas — útil para observar respostas biológicas, mas insuficiente para conclusões universais. UB, 1999.
Conclusão
O relato da University at Buffalo e as publicações do mesmo grupo sustentam uma mensagem simples, e muitas vezes contraintuitiva: para atletas de endurance, uma dieta com gordura muito baixa pode não ser uma escolha neutra. Em alguns cenários, ela parece se associar a pior perfil de marcadores imunológicos, enquanto níveis moderados a mais altos de gordura, nesses protocolos, não mostraram o efeito “imunossupressor” que muitos temiam. Venkatraman et al., 1997; Venkatraman et al., 1998.
Fonte: https://www.buffalo.edu/news/releases/1999/05/2753.html
