O artigo “Low-Carbohydrate Diets of Varying Macronutrient Quality and Risk of Type 2 Diabetes in Three U.S. Prospective Cohort Studies”, publicado em 2025 na revista Diabetes Care, avaliou a relação entre diferentes tipos de dietas com baixo teor de carboidratos (low-carbohydrate diets – LCD) e o risco de desenvolver diabetes tipo 2 (DM2) em longo prazo.
Os autores analisaram dados de 199.006 profissionais de saúde norte-americanos, acompanhados por até 30 anos, combinando três coortes amplamente conhecidas:
- Nurses’ Health Study (NHS) – iniciado em 1984,
- Nurses’ Health Study II (NHS II) – iniciado em 1991,
- Health Professionals Follow-up Study (HPFS) – iniciado em 1986.
Os participantes eram adultos sem diagnóstico prévio de diabetes, doenças cardiovasculares ou câncer no início do acompanhamento. A cada dois a quatro anos, eles respondiam questionários de frequência alimentar (FFQ) validados e atualizados, com informações sobre mais de 130 itens alimentares.
A partir dessas respostas, os pesquisadores criaram cinco tipos de escores de LCD, variando conforme a origem e a “qualidade” dos macronutrientes predominantes:
- LCD total: baixo teor de carboidratos, com aumento proporcional de proteínas e gorduras totais;
- LCD de origem animal: priorizando proteínas e gorduras de alimentos de origem animal;
- LCD de origem vegetal: priorizando proteínas e gorduras de origem vegetal;
- LCD “não saudável”: baixo consumo de carboidratos vindos de grãos integrais e frutas, com aumento de gorduras e proteínas de origem animal;
- LCD “saudável”: baixo consumo de carboidratos de baixa qualidade (açúcares e refinados), com aumento de proteínas e gorduras de origem vegetal.
Durante o seguimento, foram documentados mais de 12 mil novos casos de diabetes tipo 2.
Após ajustes multivariados para fatores como idade, IMC, atividade física, tabagismo, consumo de álcool, histórico familiar e total calórico, os resultados mostraram:
- LCD geral: risco aumentado de DM2 (HR 1,31; IC 95% 1,25–1,37);
- LCD animal: risco aumentado (HR 1,39; IC 95% 1,32–1,45);
- LCD não saudável: risco aumentado (HR 1,44; IC 95% 1,37–1,51);
- LCD vegetal: risco ligeiramente menor (HR 0,94; IC 95% 0,90–0,98);
- LCD saudável: risco reduzido (HR 0,84; IC 95% 0,81–0,88).
Em resumo, as dietas que enfatizavam proteínas e gorduras de origem animal foram associadas a maior risco de diabetes tipo 2, enquanto aquelas baseadas em fontes vegetais e carboidratos de “boa qualidade” mostraram um risco menor.
Essas conclusões, porém, devem ser interpretadas com extrema cautela, pois derivam de dados observacionais autodeclarados e de uma metodologia que contém diversas limitações estruturais, as quais podem explicar artificialmente os resultados encontrados.
Análise crítica: limitações e deficiências metodológicas
1. Mensuração imprecisa da dieta (erro de classificação alimentar)
O estudo baseia-se em questionários de frequência alimentar (FFQ), aplicados periodicamente por mais de três décadas.
Esses instrumentos são conhecidos por gerar erros substanciais de estimativa, uma vez que dependem da memória e da autopercepção dos participantes.
Entre os principais problemas:
- Sub ou superestimação da ingestão de calorias e macronutrientes.
- Falta de detalhes sobre modo de preparo, tipo de corte, gordura usada no cozimento ou proporção real de alimentos.
- Incapacidade de distinguir carboidratos líquidos de fibras, nem diferenciar carnes frescas de processadas.
- Mudanças sazonais e culturais ao longo de 30 anos, impossíveis de capturar com exatidão.
Assim, a composição das dietas analisadas pode estar profundamente distorcida, e os escores de “baixo carboidrato” podem não refletir o consumo real.
Esse tipo de erro — conhecido como erro de classificação não diferencial — tende a diluir associações reais e, paradoxalmente, criar correlações falsas quando ajustado estatisticamente.
2. Definição inadequada do que é “baixo carboidrato”
Os participantes classificados como “low-carb” consumiam, em média, 30% a 40% das calorias vindas de carboidratos.
Em termos práticos, isso equivale a cerca de 150 a 200 gramas de carboidratos por dia — muito acima do que seria considerado uma dieta verdadeiramente baixa (<100 g/dia, e especialmente <50 g/dia em dietas cetogênicas).
Portanto, o estudo não avaliou dietas low-carb no sentido metabólico, e sim dietas moderadas em carboidratos, típicas da população geral.
Os resultados não podem ser extrapolados para dietas cetogênicas, carnívoras ou terapêuticas, usadas clinicamente para melhora da resistência à insulina.
3. Ausência de validação bioquímica
Nenhum marcador objetivo — como glicemia em jejum, insulina, cetonas, triglicerídeos ou HbA1c — foi usado para confirmar se os participantes realmente estavam em um estado metabólico compatível com uma dieta de baixo carboidrato.
Isso significa que o estudo presume que menor ingestão percentual de carboidratos se traduz em alteração metabólica — uma suposição sem comprovação.
Sem validação bioquímica, os autores não podem afirmar que os efeitos observados decorreram de um estado fisiológico de restrição de carboidratos.
4. Classificação arbitrária dos alimentos como “saudáveis” e “não saudáveis”
Os escores de “LCD saudável” e “LCD não saudável” foram construídos com base em diretrizes dietéticas pré-existentes, como o Healthy Eating Index (HEI), que reflete critérios normativos e não evidências clínicas diretas.
Assim, alimentos de origem animal foram automaticamente categorizados como “não saudáveis”, enquanto grãos integrais, leguminosas e óleos vegetais foram considerados “saudáveis” — independentemente de seus efeitos metabólicos individuais.
Essa escolha introduz um viés estrutural: as conclusões já estão embutidas na própria definição dos escores.
Logo, quando o estudo encontra que “LCD não saudável aumenta o risco”, ele está apenas confirmando uma premissa estatística previamente construída, e não descobrindo um fato novo.
5. Agrupamento grosseiro de fontes alimentares
O estudo trata alimentos de origens amplamente distintas como se fossem equivalentes:
- Carnes processadas e carnes frescas foram somadas no mesmo grupo “animal”;
- Peixes, ovos e laticínios não foram diferenciados de carnes vermelhas;
- Gorduras vegetais incluem desde oleaginosas até óleos refinados ultraprocessados, de efeitos metabólicos opostos.
Essa falta de granularidade leva a interpretações enganosas: uma pessoa que come peixe, ovos e azeite pode ser estatisticamente igualada a outra que consome bacon, manteiga e embutidos.
Consequentemente, as categorias “animal” e “vegetal” não representam padrões reais de consumo, mas agrupamentos heterogêneos com pouca validade biológica.
6. Viés de estilo de vida e status socioeconômico
Os grupos que adotam dietas com maior presença de alimentos de origem vegetal tendem, por perfil populacional, a apresentar:
- Maior renda e escolaridade,
- Menor prevalência de tabagismo e sedentarismo,
- Maior uso de suplementos e visitas médicas regulares.
Esses fatores, ainda que parcialmente ajustados nos modelos estatísticos, nunca são totalmente controláveis.
Portanto, parte da associação entre “dietas vegetais” e menor risco de diabetes pode simplesmente refletir um estilo de vida mais saudável e maior acesso a cuidados médicos, e não a composição alimentar em si.
7. Falta de controle sobre substituição alimentar real
Os escores de LCD assumem que reduzir carboidratos leva automaticamente ao aumento proporcional de gordura e proteína, mas o modelo não avalia o que foi substituído por quê.
Por exemplo:
- Reduzir arroz e aumentar peixe não é o mesmo que reduzir pão e aumentar bacon.
- Cortar refrigerantes e aumentar ovos tem impacto metabólico muito distinto de cortar frutas e aumentar manteiga.
Sem controle sobre essas substituições, o estudo não identifica causalidade, apenas detecta correlações estatísticas superficiais entre grupos de alimentos arbitrariamente definidos.
8. Ausência de contexto metabólico e fisiológico
O estudo mede apenas a incidência de diabetes tipo 2, sem investigar marcadores intermediários que ajudariam a compreender mecanismos causais — como resistência à insulina, glicemia pós-prandial, lipídios plasmáticos, inflamação ou composição corporal.
Sem essas informações, é impossível saber por que certos padrões alimentares se associaram a maior risco — ou se essa associação é real.
Em contraste, ensaios clínicos controlados com dietas cetogênicas mostram melhora consistente desses marcadores, o que contradiz as inferências observacionais do estudo.
9. Duração e mudanças de comportamento ao longo do tempo
Os dados se estendem por quase três décadas, mas o modelo estatístico assume uma linearidade constante: trata como se o indivíduo tivesse mantido o mesmo padrão alimentar durante todo o período.
Na prática, a maioria das pessoas muda radicalmente seus hábitos alimentares e de vida em 30 anos.
Logo, o que o estudo chama de “exposição cumulativa” é uma média aritmética de padrões inconsistentes, diluindo ou até invertendo a direção real da associação.
10. Ausência de controle para regressão metabólica e efeito do peso corporal
Os próprios autores reconhecem que parte da associação entre LCD e DM2 foi mediada pelo IMC.
Isso significa que o risco aumentado em algumas categorias pode estar refletindo mudanças de peso e comportamento alimentar subsequentes, e não o padrão dietético em si.
Em outras palavras: pessoas com sobrepeso podem ter adotado dietas “low-carb” de forma reativa, após piora metabólica, gerando viés de causalidade reversa.
11. Generalização limitada
As três coortes são compostas majoritariamente por profissionais de saúde brancos, de nível educacional elevado e estilo de vida distinto da população geral.
Esse perfil reduz a aplicabilidade dos resultados para populações de outras origens étnicas, classes sociais ou países com padrões alimentares diferentes.
12. Interpretação causal indevida
Os autores concluem que “dietas com baixo teor de carboidratos de má qualidade aumentam o risco de diabetes tipo 2”.
Contudo, o desenho do estudo é observacional e não experimental.
Nenhuma das análises permite inferir causalidade, apenas associação.
Os valores de hazard ratio (entre 1,3 e 1,4) são modestos, e dentro do intervalo esperado para viés residual em estudos populacionais.
Portanto, afirmar que “a dieta causa diabetes” é estatisticamente injustificável.
13. Divergência com ensaios clínicos randomizados
Vários estudos clínicos controlados demonstram que dietas low-carb e cetogênicas:
- Melhoram o controle glicêmico,
- Reduzem a necessidade de insulina,
- Aumentam a sensibilidade à insulina,
- Diminuem triglicerídeos e aumentam HDL,
- E, em muitos casos, revertem o diabetes tipo 2.
Esses efeitos foram observados de forma consistente em ensaios com biomarcadores objetivos — exatamente o oposto da correlação negativa encontrada por Liu et al.
Essa discrepância reforça que o estudo de 2025 não mede a fisiologia real de dietas low-carb, mas apenas padrões populacionais autodeclarados, sem equivalência metabólica.
Conclusão
O estudo de Liu et al. é estatisticamente robusto, mas conceitualmente frágil.
Ele revela associações interessantes, porém não confiáveis como base causal, pois sofre de múltiplos vieses estruturais: erro de mensuração alimentar, definições arbitrárias, agrupamento grosseiro de alimentos e ausência de dados bioquímicos.
O resultado final reflete correlações sociológicas, não fisiológicas.
O fato de uma “low-carb vegetal” se associar a menor risco de diabetes e uma “low-carb animal” a maior risco provavelmente diz mais sobre diferenças de estilo de vida e status socioeconômico do que sobre os alimentos em si.
Portanto, a principal conclusão que se pode tirar com segurança é que:
“O estudo não fornece evidência de que dietas com baixo teor de carboidratos de origem animal aumentem o risco de diabetes tipo 2. Ele apenas identifica uma correlação estatística fraca, suscetível a múltiplos vieses metodológicos e conceituais.”
Referência:
Liu B, Wang Y, Hu Y, et al. Low-Carbohydrate Diets of Varying Macronutrient Quality and Risk of Type 2 Diabetes in Three U.S. Prospective Cohort Studies. Diabetes Care. 2025. DOI: 10.2337/dc25-1401
*Estudo completo com material suplementar disponível na newsletter
