A tireoide exerce papel central no metabolismo, regulando gasto energético, termogênese, funções mitocondriais e síntese proteica. Os hormônios tiroxina (T4) e triiodotironina (T3) atuam em praticamente todos os tecidos do corpo. Alterações na dieta podem modificar profundamente a atividade desse eixo hormonal. Entre as estratégias mais estudadas está a dieta cetogênica (DC), caracterizada por baixo consumo de carboidratos e alto consumo de gorduras. Essa abordagem induz o estado de cetose, no qual o corpo passa a usar corpos cetônicos — como beta-hidroxibutirato (BHB) e acetoacetato — como principal fonte de energia.
O artigo revisado apresenta como a DC influencia a regulação do eixo hipotálamo–hipófise–tireoide (HPT), a conversão periférica dos hormônios tireoidianos e o impacto em diferentes contextos clínicos, incluindo hipotireoidismo, Hashimoto, Graves e câncer de tireoide.
Adaptações do eixo HPT na dieta cetogênica
Estudos mostram que a DC provoca uma redução consistente nos níveis de T3, muitas vezes sem aumento compensatório do TSH. Esse padrão indica uma adaptação fisiológica e não necessariamente uma disfunção. O mecanismo envolve:
- Redução de insulina → menor estímulo das deiodinases (DIO1 e DIO2) → menos conversão de T4 em T3.
- Aumento de rT3 (forma inativa de T3) pela ação da DIO3.
- Ação do BHB, que pode modular a secreção de TRH e TSH, reforçando o estado de conservação energética.
Assim, o organismo reduz o metabolismo basal de forma semelhante ao jejum, mas sem sinais claros de falência tireoidiana.
Papel dos hormônios moduladores
A DC também modifica hormônios que interagem com a função da tireoide:
- Leptina: cai com a perda de gordura, reduzindo estímulo para TRH e TSH.
- Insulina: em queda, diminui conversão de T4 em T3.
- Cortisol: pode se elevar no início da adaptação, inibindo TRH/TSH e aumentando rT3; tende a normalizar após 6–8 semanas.
- Grelina: exerce influência menor, mas pode modular TSH em restrição energética.
Essas mudanças favorecem um perfil de economia de energia, relevante em contextos de restrição.
Efeitos imunológicos e oxidativos
A glândula tireoide é altamente sensível ao estresse oxidativo, fator central em doenças autoimunes. A DC, ao elevar corpos cetônicos, promove:
- Redução de espécies reativas de oxigênio (ERO).
- Ativação do fator Nrf2, que aumenta enzimas antioxidantes (SOD, GPx).
- Inibição do inflamassoma NLRP3, reduzindo citocinas inflamatórias como IL-1β e TNF-α.
- Aumento de células T reguladoras (Treg) e diminuição de Th17, favorecendo tolerância imunológica.
Esses mecanismos podem proteger contra inflamação crônica e contribuir para melhora em doenças autoimunes como a tireoidite de Hashimoto.
Fatores individuais: genética e sexo
A resposta à DC é heterogênea:
- Polimorfismo Thr92Ala no gene DIO2: pode reduzir conversão de T4 em T3, levando a sintomas de “hipotireoidismo funcional” mesmo com TSH normal.
- APOA2 (−265T>C): pode aumentar risco de resposta negativa a dietas ricas em gordura saturada.
- PPARα (Leu162Val): afeta a eficiência da cetogênese.
Além disso, mulheres apresentam maior sensibilidade a alterações de leptina e estrogênio, podendo ter maior risco de irregularidades menstruais sob DC restritiva. Homens tendem a manter melhor a resposta metabólica e hormonal.
Microbiota, nutrientes e SCFAs
A DC pode reduzir fibras prebióticas, diminuindo produção de ácidos graxos de cadeia curta (AGCC) como o butirato, que favorece a conversão de T4 em T3. Alterações da microbiota também impactam a absorção de iodo, selênio e zinco — minerais cruciais para a síntese e regulação hormonal. Tanto a deficiência quanto o excesso de iodo podem agravar autoimunidade.
Tradução clínica
- Eutireoidianos: costumam apresentar queda de T3 e aumento de T4, sem alteração de TSH. Interpreta-se como adaptação, não doença.
- Hipotireoidismo em uso de LT4: risco maior de sintomas por queda de T3; pode haver necessidade de monitoramento ampliado (incluindo fT3 e rT3).
- Hashimoto: possível benefício anti-inflamatório, mas risco se houver carência de micronutrientes ou desequilíbrio intestinal.
- Graves: evidência escassa; em fase ativa pode agravar catabolismo, sendo uso apenas adjuvante e experimental.
- Câncer de tireoide: em modelos animais, a DC reduziu crescimento tumoral explorando a dependência glicolítica das células malignas; em humanos, faltam ensaios.
Monitoramento recomendado
- Exames laboratoriais: TSH, fT4, fT3, rT3, anticorpos (TPOAb, TgAb), além de zinco, selênio e iodo.
- Sinais clínicos: fadiga, frio, alterações menstruais, queda de cabelo, alterações cognitivas.
- Ajustes dietéticos: inclusão de fontes animais ricas em micronutrientes (peixes, vísceras, ovos), uso criterioso de sal iodado, preferência por gorduras insaturadas.
Conclusão
A dieta cetogênica provoca uma recalibração metabólica no eixo tireoidiano: T3 cai, T4 sobe e TSH tende a permanecer estável. Esse padrão não significa, por si só, hipotireoidismo, mas sim uma estratégia de economia energética do organismo. Contudo, em indivíduos com predisposição genética, doenças autoimunes ou uso de levotiroxina, a DC pode trazer riscos que necessitam de acompanhamento profissional para avaliar e tratar de forma adequada.
A aplicação clínica deve ser personalizada, com monitoramento laboratorial ampliado, avaliação nutricional e atenção a sintomas. Dessa forma, é possível usufruir dos benefícios metabólicos e anti-inflamatórios da DC sem comprometer a saúde da tireoide.
