O manejo nutricional do diabetes tipo 2 (DM2) é um dos pilares para o controle glicêmico, redução do risco cardiovascular e prevenção de complicações crônicas. As melhores evidências científicas disponíveis — incluindo ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas e metanálises — apontam de forma consistente que a redução da ingestão total de carboidratos, especialmente de alimentos com alto índice glicêmico (IG) e elevada carga glicêmica, é fundamental para melhorar parâmetros metabólicos e, em muitos casos, permitir a redução ou até a suspensão de medicamentos.
Nesse contexto, tanto a batata branca quanto o arroz branco se enquadram como alimentos ricos em amido de rápida digestão, com elevado IG, capazes de provocar elevações rápidas e acentuadas da glicose sanguínea. Este perfil é sabidamente desfavorável para indivíduos com resistência insulínica e DM2, tornando relevante questionar o fundamento científico de um estudo cujo objetivo foi apenas comparar qual dessas fontes de amido poderia ser “menos prejudicial” para essa população.
Desenho do Estudo e Resultados Negativos
O estudo em questão foi um ensaio clínico randomizado cruzado, no qual indivíduos com DM2 consumiram diariamente, por 12 semanas, 100 g de batata branca assada com casca ou 75 g de arroz branco cozido (controle isocalórico). Entre os resultados, destacam-se achados desfavoráveis comuns a ambos os grupos:
- Piora da função endotelial
- Observou-se redução significativa da relação FMD/estresse de cisalhamento ao longo do tempo (p=0,03) em ambos os tratamentos.
- A queda foi de aproximadamente 12% no grupo batata e 23% no grupo arroz entre a 6ª e a 12ª semana, o que indica deterioração da capacidade de vasodilatação dependente do endotélio — marcador associado a maior risco cardiovascular.
- Sobrecarga das células beta pancreáticas
- Houve aumento do HOMA-β (p=0,02) em ambos os grupos, devido a elevação dos níveis de insulina de jejum.
- Esse padrão sugere maior estímulo secretor para compensar resistência insulínica, um mecanismo que, no longo prazo, pode acelerar a falência da função pancreática.
- Resposta inflamatória transitória
- A proteína C-reativa ultrassensível (hs-CRP) apresentou aumento intermediário aos 6 semanas, retornando ao basal em 12 semanas, tanto na batata quanto no arroz.
- Embora temporário, o aumento desse marcador inflamatório está relacionado a risco cardiometabólico.
- Tendência à piora da rigidez arterial
- A velocidade de onda de pulso (PWV) do lado esquerdo apresentou tendência (p=0,08) para elevação, especialmente no grupo batata entre a 6ª e a 12ª semana e no grupo arroz na 6ª semana.
- Alterações pequenas (<1,0 m/s) não têm significado clínico isolado, mas podem sinalizar trajetória desfavorável.
- Ausência de melhora no controle glicêmico crônico
- Não houve redução significativa da HbA1c ou do HOMA-IR em nenhum dos grupos.
- Houve apenas tendência (p=0,09) para glicemia de jejum mais baixa no grupo batata, sem significância após ajuste para múltiplas comparações.
Após correção pelo método False Discovery Rate (FDR), apenas a redução da circunferência da cintura no grupo batata manteve significância estatística. Todos os demais resultados positivos ou negativos perderam robustez estatística, reforçando o caráter exploratório das observações.
Fundamentação Científica Questionável
- Comparação de alimentos metabolicamente semelhantes
- Ambos possuem alto IG e elevada carga glicêmica.
- A pergunta de relevância clínica para DM2 não é qual deles é menos prejudicial, mas sim se devem ser substituídos por opções de menor impacto glicêmico ou removidos como parte de uma estratégia de restrição de carboidratos.
- Desalinhamento com estratégias de maior evidência
- Ensaios como os conduzidos pela Virta Health e outros estudos sobre dietas de baixo carboidrato ou cetogênicas mostram reduções significativas de HbA1c, melhora da sensibilidade insulínica e, em muitos casos, remissão parcial do DM2.
- Manter o consumo diário de 100 g de batata ou 75 g de arroz, além de outros carboidratos da dieta habitual, contraria o objetivo de reduzir a carga glicêmica total.
- Risco de mensagem equivocada
- Estudos deste tipo podem ser usados para sustentar a narrativa de que fontes de amido de alto IG são “seguras” para diabéticos, desde que consumidas com moderação, o que conflita com a fisiopatologia da doença.
- Relevância limitada para o manejo clínico
- A ausência de desfechos de longo prazo e de comparadores metabolicamente adequados reduz o valor prático dos resultados.
- O foco ideal seria investigar padrões alimentares que realmente promovam controle glicêmico e redução de risco cardiovascular.
Considerações Éticas e de Prioridade Científica
O financiamento do estudo por uma entidade ligada à indústria da batata levanta necessidade de interpretação cuidadosa, pois pode direcionar o enquadramento dos resultados para conclusões favoráveis ao produto. Além disso, recursos de pesquisa poderiam ser mais bem aplicados em estudos que comparem estratégias nutricionais alinhadas às diretrizes mais eficazes para DM2, como redução significativa de carboidratos de rápida absorção.
Conclusão
A comparação entre batata branca e arroz branco em indivíduos com DM2 parte de um fundamento cientificamente frágil, pois ignora a evidência consolidada de que a prioridade nessa condição deve ser a redução da carga total de carboidratos e a exclusão de fontes com alto IG.
Embora o estudo mostre que a batata não é pior que o arroz em desfechos de curto prazo, também evidencia que nenhum dos dois melhora o controle glicêmico ou parâmetros vasculares e que ambos estão associados a tendências de piora em marcadores relevantes.
Assim, a aplicação prática desses achados no tratamento do DM2 é limitada e pode induzir a conclusões equivocadas se descontextualizada das melhores evidências disponíveis.
