No cerne das diretrizes nutricionais que moldaram gerações inteiras está uma história pouco conhecida — e profundamente perturbadora — de influência corporativa, manipulação científica e desinformação institucionalizada. Essa história começa com um conjunto de arquivos esquecidos por décadas, hoje conhecidos como os Sugar Papers, que revelam como a indústria do açúcar conduziu uma das campanhas mais eficazes de desvio de foco na história da saúde pública moderna.
A Ascensão do Açúcar e o Surgimento de um Problema Metabólico
Ao longo do século XX, o consumo de açúcar aumentou de forma exponencial nos países ocidentais. Com o avanço da industrialização alimentar, o açúcar deixou de ser um artigo raro e tornou-se um ingrediente onipresente, presente em refrigerantes, cereais matinais, molhos industrializados, pães, produtos light e infantis.
Ao mesmo tempo, observou-se um crescimento igualmente acentuado das chamadas doenças crônicas não transmissíveis — doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2, obesidade, esteatose hepática não alcoólica (EHNA) e alguns tipos de câncer. Ainda que essas condições tenham múltiplos determinantes, o papel central da alimentação passou a ser cada vez mais evidente.
Contudo, durante grande parte do século XX, o foco das pesquisas — e das campanhas de saúde pública — recaiu quase exclusivamente sobre as gorduras, em especial as saturadas. A demonização da gordura se tornou política oficial, culminando nas diretrizes alimentares dos EUA de 1977, que se espalharam por diversos países, inclusive o Brasil. Mas por que, com tantos sinais de que o açúcar poderia estar implicado, a atenção foi desviada de forma tão contundente?
Sugar Research Foundation: Quando o Interesse Econômico Dirige a Ciência
Fundada em 1943, a Sugar Research Foundation (SRF), posteriormente renomeada para International Sugar Research Foundation (ISRF), era o braço científico da indústria açucareira norte-americana. Seu objetivo declarado era financiar estudos que demonstrassem os benefícios do açúcar e refutassem qualquer evidência que o ligasse a problemas de saúde.
Documentos internos da SRF revelam que, já nos anos 1950 e 1960, havia uma crescente preocupação entre seus membros sobre estudos emergentes que começavam a associar o consumo de sacarose ao risco cardiovascular. Para evitar perdas de mercado, a fundação traçou uma estratégia explícita: financiar pesquisas que minimizassem os riscos do açúcar e maximizassem os supostos malefícios da gordura.
Em 1965, a SRF contratou três pesquisadores de Harvard — incluindo Mark Hegsted, que mais tarde ocuparia um cargo influente no Departamento de Agricultura dos EUA — para escrever um artigo de revisão que "refutasse" a associação entre açúcar e doença cardíaca. O pagamento, feito secretamente, foi de aproximadamente 6.500 dólares da época (cerca de 50 mil dólares hoje, ajustados pela inflação). O estudo resultante foi publicado no New England Journal of Medicine em 1967, sem nenhuma menção ao patrocínio da indústria — algo comum na época, mas eticamente indefensável.
A Revisão Manipulada: O Estudo que Mudou a Nutrição Global
O artigo financiado pela SRF revisou seletivamente os dados disponíveis até então. Dos estudos que apontavam riscos do açúcar, muitos foram descartados ou minimizados sob justificativas metodológicas frágeis. Em contrapartida, as evidências contra a gordura saturada foram amplificadas.
O impacto foi profundo. Não se tratava apenas de uma publicação em revista científica — era uma manobra calculada para moldar a opinião pública, influenciar políticas alimentares e garantir décadas de lucro à indústria do açúcar. O conteúdo do artigo de Hegsted e colegas embasou relatórios de comitês governamentais e tornou-se parte do argumento central contra as gorduras nas décadas seguintes.
A própria revista que publicou o artigo, o New England Journal of Medicine, só passou a exigir a divulgação de conflitos de interesse em 1984 — quase 20 anos após o ocorrido.
Diretrizes Alimentares: Uma Política Baseada em Falsos Alicerces
Em 1977, o Comitê do Senado dos EUA, liderado por George McGovern, publicou as primeiras diretrizes dietéticas norte-americanas. As recomendações eram claras: reduzir a ingestão de gordura total e saturada e aumentar o consumo de carboidratos. Como consequência direta, os consumidores passaram a substituir manteiga por margarina, carne por pães integrais, ovos por cereais, e gordura animal por óleos vegetais poli-insaturados.
Essa orientação não só foi adotada em países de língua inglesa, mas também permeou documentos da OMS e da FAO, chegando à base curricular da educação nutricional no mundo todo.
Os desdobramentos foram trágicos. O consumo de açúcar e amido refinado explodiu. O índice de obesidade, que estava relativamente estável até os anos 1970, cresceu exponencialmente. O diabetes tipo 2 — uma condição rara antes do século XX — tornou-se epidemia global.
O Retorno dos Dados Esquecidos: A Redescoberta dos Sugar Papers
Décadas depois, em 2016, pesquisadores da Universidade da Califórnia, liderados por Cristin E. Kearns, Stanton Glantz e Laura Schmidt, publicaram na JAMA Internal Medicine uma investigação minuciosa sobre os arquivos da SRF. Eles analisaram mais de 340 documentos internos que haviam sido esquecidos em arquivos da biblioteca da Universidade de Illinois.
A análise revelou detalhes sobre a estratégia da indústria para manipular o debate científico, comprar pesquisadores influentes, controlar o conteúdo de artigos e ocultar conflitos de interesse.
A publicação desses dados causou enorme repercussão. Pela primeira vez, havia provas documentais de que os pilares das diretrizes alimentares modernas foram deliberadamente manipulados.
Estratégias Corporativas: O Caso do Tabaco e o Paralelo com o Açúcar
As táticas da indústria do açúcar têm muitos paralelos com a da indústria do tabaco. Ambas adotaram as mesmas estratégias: financiar estudos favoráveis, semear dúvida sobre as evidências contrárias, contratar especialistas com credibilidade institucional e investir em marketing para reforçar mensagens convenientes.
O objetivo não era produzir ciência confiável, mas manter o lucro e proteger a imagem do produto.
Além disso, a SRF financiou pesquisas que tentavam estabelecer que os efeitos do açúcar eram no máximo relacionados a cáries dentárias — minimizando sua relação com doenças metabólicas, hepáticas ou cardiovasculares. Isso limitou por décadas o escopo dos estudos epidemiológicos sobre os efeitos reais do açúcar no corpo humano.
A Ciência Recuperada: O que Realmente Sabemos Sobre o Açúcar?
Hoje, uma avalanche de dados demonstra que a ingestão excessiva de açúcar — especialmente na forma de frutose adicionada (presentes no xarope de milho e na sacarose) — está associada a múltiplos desfechos adversos:
- Resistência à insulina e hiperinsulinemia
- Obesidade visceral
- Dislipidemias aterogênicas (aumento de triglicerídeos, redução de HDL e aumento de partículas pequenas e densas de LDL)
- Doença hepática gordurosa não alcoólica
- Inflamação sistêmica de baixo grau
- Aumento do risco cardiovascular independente de peso corporal
Estudos como os de Lustig, Te Morenga, Stanhope e DiNicolantonio vêm reforçando que a toxicidade metabólica do açúcar é real, mensurável e dependente da dose.
Por que Isso Ainda Importa?
A história dos Sugar Papers expõe uma ferida ainda aberta na interface entre ciência, indústria e política. Ela levanta questões fundamentais:
- Quantas outras diretrizes ainda são baseadas em ciência influenciada por interesses comerciais?
- O que acontece quando a integridade acadêmica é corroída por financiamento corporativo?
- Como garantir que futuras políticas públicas priorizem o interesse coletivo, e não o lucro privado?
Apesar das evidências hoje serem mais robustas do que nunca, muitos documentos oficiais ainda hesitam em fazer recomendações firmes contra o açúcar, optando por termos vagos como “moderação” — enquanto alimentos ultraprocessados continuam sendo promovidos como parte de uma “dieta equilibrada”.
Conclusão: Um Chamado à Reforma Ética na Nutrição
Os Sugar Papers não representam apenas um episódio vergonhoso da história da nutrição. Eles constituem um alerta sobre o que ocorre quando a ciência perde sua independência. Eles mostram como decisões políticas baseadas em ciência manipulada podem afetar milhões de vidas ao longo de gerações.
Revisar as diretrizes alimentares à luz dessas evidências não é apenas um imperativo técnico, mas um dever moral.
A transparência no financiamento de pesquisas, a exigência de revisão independente e o combate a conflitos de interesse precisam estar no centro de uma nova era científica — uma era em que a saúde pública não seja subordinada ao interesse privado.