A obesidade é amplamente percebida como um problema de saúde associado à modernidade: dietas ultraprocessadas, sedentarismo e ambientes que favorecem o consumo excessivo de energia. Mas será que a obesidade é mesmo um fenômeno exclusivo dos tempos atuais? Um estudo publicado na Evolution, Medicine, and Public Health propõe revisitar essa questão a partir de uma perspectiva intrigante: as enigmáticas figuras de Vênus do Paleolítico.
As figuras de Vênus e seu contexto arqueológico
Esculpidas entre 23.000 e 25.000 anos antes do presente, as chamadas "figuras de Vênus" representam mulheres de formas corpulentas e são encontradas em diversos sítios da Europa durante o período Paleolítico Superior. Muitas apresentam características anatômicas que sugerem um padrão realista de obesidade: pregas de gordura bem demarcadas e proporções corporais que destacam regiões de acúmulo adiposo feminino, como quadris e seios.
Essas figuras surgiram justamente durante a última máxima glacial, um período de severo estresse ecológico e escassez alimentar, o que torna sua iconografia ainda mais paradoxal: como mulheres teriam alcançado tal adiposidade em um ambiente marcado pela escassez?
Limites das explicações tradicionais
Teorias evolutivas clássicas, como a do "genótipo econômico" e do "genótipo à deriva", tentaram explicar a predisposição genética para obesidade sem, no entanto, assumir que a obesidade fosse comum no passado. A obesidade, nessas interpretações, seria um "desencontro evolutivo", isto é, um desajuste entre adaptações genéticas antigas e o ambiente atual.
Por outro lado, a presença das figuras de Vênus sugere que, mesmo que rara, a obesidade existiu em grupos caçadores-coletores do Paleolítico. Isso leva os autores a proporem um modelo inovador: uma hipótese ecológica e de curso de vida capaz de explicar o surgimento desses fenótipos em contextos extremos.
O modelo ecológico e de curso de vida
O artigo argumenta que devemos superar o paradigma simplista da "equação do balanço energético" — que reduz a obesidade a um problema de consumo excessivo e gasto insuficiente de calorias — e considerar fatores que perturbam o metabolismo celular e regulam o apetite de forma mais complexa.
Três fatores principais são destacados:
- Ambiente térmico e composição corporal: Populações em climas frios tendem a apresentar maior massa magra para geração de calor e, em mulheres, maior adiposidade, crucial para suportar a lactação em situações adversas. Isso pode ter promovido dimorfismo sexual exacerbado na composição corporal durante a última glaciação.
- Composição da dieta e o conceito de alavancagem proteica: Com a progressiva substituição de alimentos de origem animal por vegetais de baixo teor proteico no final do Paleolítico, a proporção de proteína na dieta teria diminuído. O princípio da "alavancagem proteica" postula que, em dietas pobres em proteína, ocorre uma ingestão excessiva de energia para compensar a necessidade proteica, favorecendo o ganho de peso.
- Origens do desenvolvimento da obesidade: O impacto da obesidade materna sobre o risco de obesidade nos filhos é bem documentado atualmente. Mães com maior adiposidade transferem excesso de energia ao feto, o que altera a fisiologia e predispõe o filho ao acúmulo de gordura após o nascimento. Esse ciclo intergeracional pode ter contribuído para amplificar a obesidade em certos grupos durante o Gravettiano, ainda que a prevalência geral fosse baixa.
Evidências bioarqueológicas de mudanças dietéticas e físicas
Estudos de microdesgaste dentário e análise de cálculo dental revelam aumento no consumo de plantas, inclusive em ambientes glaciais rigorosos, indicando maior dependência de fontes vegetais pobres em proteína durante o Gravettiano e Magdaleniano. Paralelamente, registros esqueléticos sugerem diminuição da estatura e alterações proporcionais (encurtamento relativo das pernas), adaptações possivelmente associadas tanto a restrições proteicas quanto à necessidade de minimizar a perda de calor.
Embora a média de peso e altura possa ter diminuído, o modelo sugere que mudanças ambientais e dietéticas poderiam ter deslocado a distribuição populacional de IMC, com uma fração pequena de indivíduos — em particular mulheres — atingindo níveis de adiposidade notáveis o suficiente para motivar a confecção das figuras de Vênus.
Conclusão: obesidade como fenômeno ancestral e adaptativo?
A hipótese eco-curso de vida propõe que a obesidade no Paleolítico não era comum, mas podia emergir em populações expostas a ambientes frios e dietas de baixo teor proteico, especialmente entre mulheres. A obesidade, nesse contexto, seria tanto resultado de interações ambientais e biológicas quanto um fenômeno potencialmente amplificado por efeitos maternos transgeracionais.
As figuras de Vênus, portanto, poderiam ter sido representações não apenas simbólicas, mas também observacionais de um fenômeno biológico real, ainda que raro, de mulheres que atingiram elevados níveis de adiposidade em períodos de forte estresse ambiental.
Essa abordagem amplia nossa compreensão sobre a complexidade da obesidade, mostrando que ela não deve ser vista apenas como um "mal moderno", mas como um fenômeno cuja etiologia está profundamente enraizada na ecologia e na biologia evolutiva humana.
