Dimensionamento metabólico, compensações na alocação de energia e a evolução do metabolismo único dos humanos


Ao longo da história evolutiva, todos os organismos enfrentaram o mesmo desafio biológico: alocar energia limitada entre as demandas fundamentais de crescimento, sobrevivência e reprodução. No entanto, os humanos se destacam como uma espécie particularmente “extravagante” em termos energéticos, sustentando cérebros grandes, intervalos curtos entre nascimentos, altos níveis de atividade física e uma longevidade incomum. O estudo publicado por Yegian e colaboradores na revista PNAS explora justamente como a espécie humana conseguiu conciliar essas demandas energéticas aparentemente conflitantes, revelando as bases fisiológicas e evolutivas do nosso metabolismo único.

Compreendendo as taxas metabólicas e suas escalas

Em termos comparativos, primatas não humanos, como chimpanzés, apresentam taxas metabólicas totais (Total Energy Expenditure, TEE) semelhantes a mamíferos de tamanho corporal equivalente que vivem em ambientes com temperaturas semelhantes. No entanto, diferentes padrões emergem quando analisamos a composição da TEE. O gasto energético total pode ser dividido em três componentes principais:

  • Gasto Energético em Repouso (REE): energia destinada a funções básicas de manutenção corporal e fisiológicas;
  • Gasto Energético Ativo (AEE): energia despendida em atividades físicas;
  • Termogênese Induzida pela Dieta (DIT): energia usada na digestão, geralmente estimada em cerca de 10% do TEE.

Outros primatas compensam um maior REE com menores níveis de atividade física (AEE), caracterizando um tradeoff energético entre manutenção e atividade. Em contraste, o ser humano superou essa limitação, mantendo altas taxas tanto de REE quanto de AEE, resultando em um metabolismo total significativamente elevado.

Quotientes metabólicos: método inovador para comparação

Os autores desenvolveram o conceito de quotientes metabólicos para comparar metabolicamente espécies e populações humanas. Esses quotientes ajustam as taxas medidas para os valores esperados em mamíferos “médios” equivalentes, considerando tamanho corporal, composição corporal (massa livre de gordura), temperatura ambiental e relações filogenéticas.

Três quotientes principais foram usados:

  • TMQ (Total Metabolic Quotient): relação entre TEE observado e esperado;
  • RMQ (Resting Metabolic Quotient): relação entre REE observado e esperado;
  • AMQ (Activity Metabolic Quotient): relação entre AEE observado e esperado.

Enquanto primatas não humanos permanecem próximos ao valor médio esperado (TMQ ≈ 1), populações humanas, incluindo caçadores-coletores Hadza e agricultores tradicionais, apresentam TMQs substancialmente mais altos (1,4–1,8). Isso reflete um gasto energético total que ultrapassa em até 80% o previsto para um mamífero de tamanho e ambiente similares.

Evolução do metabolismo humano

O estudo mostra que, na evolução primata, houve uma elevação progressiva no RMQ, sugerindo que aumentos no gasto energético de manutenção permitiram o suporte a cérebros maiores e vidas mais longas. Nos humanos, além de manter RMQs elevados, observou-se uma elevação concomitante no AMQ, algo incomum no padrão primata, onde o aumento de um componente geralmente implica redução de outro.

Essa capacidade humana singular foi favorecida por adaptações fisiológicas e comportamentais, especialmente mecanismos superiores de dissipação de calor, como maior número de glândulas sudoríparas e ausência de pelagem densa. Tais características permitem aos humanos sustentar altos níveis de atividade física mesmo em ambientes quentes, sem sacrificar funções metabólicas vitais.

Além disso, estratégias culturais como o uso do fogo, vestimentas e tecnologias de caça e coleta teriam contribuído para elevar a disponibilidade energética, mitigando as restrições impostas pelos tradeoffs metabólicos tradicionais.

Comparação entre populações humanas

O trabalho também examinou diferenças entre populações humanas contemporâneas. Embora a população americana pós-industrializada apresente TMQ e AMQ significativamente mais baixos do que os Hadza, o RMQ permanece semelhante. Essa homogeneidade no RMQ reforça a ideia de que o gasto de manutenção fisiológica é relativamente constante entre humanos modernos, enquanto o declínio nos níveis de atividade física em sociedades industrializadas reduz o TMQ e AMQ, contribuindo para sedentarismo e aumento da adiposidade.

Essa constatação tem implicações importantes: os seres humanos, de maneira geral, mantêm um metabolismo de repouso elevado em relação a outros mamíferos, mas o nível de atividade física nas sociedades modernas está aquém do padrão evolutivo, representando um verdadeiro “descompasso” evolutivo.

Implicações evolutivas e em saúde

A evolução do metabolismo humano está intrinsecamente ligada a aspectos centrais de nossa história biológica: maior investimento em cérebro, reprodução acelerada, maiores reservas de gordura corporal e longevidade prolongada. O metabolismo “extravagante” dos humanos possibilitou cuidar melhor dos filhotes, compartilhar alimentos e apoiar múltiplas gerações — características fundamentais de nossa história de vida.

Entretanto, esse mesmo metabolismo elevado implica riscos em ambientes modernos de abundância energética e sedentarismo. Populações como os Hadza demonstram um padrão fisiológico mais alinhado ao que predominou durante a maior parte da evolução humana: atividade física constante e dietas naturais com alta densidade nutricional.

Assim, moderar o sedentarismo e manter níveis adequados de atividade física são práticas coerentes com nossa biologia evolutiva e contribuem para prevenção de doenças crônicas como hipertensão, diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares.

Em resumo, os dados apresentados por Yegian et al. reforçam que os humanos são metabolicamente especiais, sustentando taxas elevadas de gasto energético não apenas em repouso, mas também em atividade, sem os tradeoffs observados em outros primatas. Essa característica moldou nossa trajetória evolutiva e permanece relevante para compreendermos os desafios de saúde da atualidade.

Fonte: https://doi.org/10.1073/pnas.2409674121

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