A evolução dos hominídeos primitivos, particularmente Homo erectus, é um tema que desperta fascínio e debates acalorados. Um dos pontos centrais dessa discussão refere-se às estratégias que esses ancestrais utilizavam para obter alimento em ambientes áridos e abertos, como as pradarias tropicais da África. Seriam eles caçadores ativos, simples capturadores de pequenas presas, ou oportunistas que dependiam de restos deixados por predadores?
Para investigar essas questões, pesquisadores alemães desenvolveram um modelo computacional baseado em agentes (agent-based model, ABM) que simula o comportamento de grupos de caçadores-coletores em ambientes semelhantes ao ecossistema do Serengeti, na Tanzânia. Este artigo científico, publicado recentemente na Quaternary Environments and Humans, fornece uma visão inédita sobre a viabilidade das diferentes estratégias de subsistência que poderiam ter sido adotadas pelos hominídeos na savana.
Contexto evolutivo e ambiental
O Homo erectus surgiu em um período de transformação ambiental significativa, quando as florestas densas cederam lugar a campos abertos e mais secos, exigindo novas adaptações. A maior escassez de recursos vegetais e a abundância de grandes mamíferos gregários colocavam um desafio: como obter alimento suficiente para sustentar grupos cada vez maiores, com corpos e cérebros em expansão?
As evidências arqueológicas sugerem que houve um aumento no consumo de carne a partir desse período, mas permanece a dúvida sobre como ela era obtida: caça ativa, captura de pequenos animais ou aproveitamento de carcaças.
O modelo de simulação: como funciona?
O modelo ForeGatherer v2.0 representa um grupo de hominídeos navegando em um ambiente virtual que reproduz aspectos fundamentais dos campos tropicais, como distribuição de recursos vegetais e populações de presas de diversos tamanhos. Cada “agente” no modelo corresponde a um indivíduo que deve garantir energia suficiente para sobreviver e contribuir para o sustento do grupo.
Entre as estratégias simuladas, destacam-se:
Captura de pequenos animais: eficiente e com alta taxa de sucesso (95%), mas com retornos limitados (~1000 kcal/hora);Escavengerismo (carroceiros): dependência de encontrar carcaças frescas, com baixo rendimento (~2300 kcal/hora) e alta mobilidade do grupo;
Caça persistente: perseguição prolongada de presas médias, baseada no cansaço da vítima;
Caça de emboscada (interceptação) e caça tática com armadilhas: estratégias que requerem conhecimento do ambiente e cooperação.
Resultados e descobertas principais
Os cenários simulados mostraram que a estratégia de captura de pequenos animais seria viável e permitiria ao grupo permanecer estável, com baixo número de deslocamentos anuais. Entretanto, essa estratégia limita a quantidade total de calorias adquiridas, dificultando o sustento de grupos maiores ou em períodos de escassez.
Já a caça de grandes herbívoros mostrou-se mais rentável em termos calóricos, mas dependente de maior mobilidade e risco. Em particular, a caça de encontro direto com presas médias e grandes (sem o uso de armas de longo alcance) apresentou os melhores retornos (~4300 kcal/hora), sugerindo que a cooperação e eventual desenvolvimento de ferramentas especializadas teriam sido fortes pressões evolutivas.
Quando os agentes tentaram caçar megafauna (animais > 1000 kg, como elefantes), mesmo estratégias táticas resultaram em alta mobilidade e esforço considerável, sugerindo que esse tipo de caça só se tornaria viável em contextos muito específicos (ex.: armadilhas naturais ou épocas de migração).
Dieta e mobilidade
Em todos os cenários que incluíam caça de presas grandes, o modelo previu um aumento no consumo de carne dessas categorias e um número maior de deslocamentos residenciais anuais. Ou seja, a dependência de grandes presas exigiria grupos mais móveis, enquanto o foco em pequenos animais permitiria um padrão mais sedentário.
O modelo também apontou que os primeiros hominídeos poderiam ter começado pela captura de pequenos animais e, progressivamente, expandido suas habilidades e tecnologias para caçar presas maiores à medida que se tornavam mais adaptados social e cognitivamente.
Implicações para a compreensão da evolução humana
Este estudo contribui para a hipótese de que a transição para uma dieta rica em carne não foi um evento súbito, mas sim um processo gradual que exigiu adaptações comportamentais, sociais e tecnológicas. A necessidade de maior cooperação durante as caçadas, planejamento e conhecimento do território possivelmente impulsionou o desenvolvimento da comunicação e das primeiras formas de organização social complexa.
Além disso, o uso do Serengeti como modelo ecológico, apesar de ser o melhor análogo atual disponível, ressalta as limitações e diferenças quando comparado aos ecossistemas do Pleistoceno, que eram mais ricos em biodiversidade e apresentavam maiores densidades populacionais de grandes mamíferos.
Conclusão
O trabalho demonstra que hominídeos primitivos poderiam ter sido tanto capturadores eficientes quanto caçadores persistentes, dependendo das condições ambientais e do desenvolvimento de habilidades sociais e tecnológicas. O aproveitamento de carcaças, embora possível, seria menos eficiente e exigiria maior mobilidade.
Este tipo de modelagem computacional oferece uma ferramenta valiosa para explorar cenários não preservados no registro fóssil, permitindo que pesquisadores testem hipóteses e compreendam melhor os desafios enfrentados pelos nossos ancestrais.
