O microbioma intestinal sem qualquer alimento vegetal? Um estudo de caso sobre o microbioma intestinal de um carnívoro saudável


A dieta carnívora tem ganhado popularidade nos últimos anos como uma extensão das dietas cetogênicas e Atkins. Esta abordagem alimentar baseia-se exclusivamente no consumo de produtos de origem animal, incluindo carne, miúdos, ovos, manteiga e produtos lácteos como leite, queijo, kefir e iogurte. Muitos adeptos relatam benefícios como aumento de energia, melhora das condições da pele e melhor estado geral de saúde.

Entretanto, existe uma preocupação crescente entre profissionais de saúde sobre os possíveis impactos desta dieta no microbioma intestinal, especialmente considerando a ausência total de fibras e carboidratos acessíveis à microbiota. Esta questão levou pesquisadores da Croácia a conduzirem o primeiro estudo científico a analisar o microbioma intestinal de uma pessoa seguindo esta dieta de forma prolongada.

O que foi estudado

Os pesquisadores do Centro de Microbioma Intestinal em Zagreb realizaram um estudo de caso único com um homem de 32 anos que seguia a dieta carnívora há quatro anos. O participante consumia exclusivamente carne bovina e suína, manteiga, queijos duros e ovos, evitando completamente vegetais, frutas, grãos e legumes.

Para comparação, os dados do microbioma foram comparados com 151 indivíduos saudáveis de características antropométricas similares, divididos em três grupos baseados na frequência de consumo de carne: consumo diário, alto consumo (≥3 vezes por semana) e baixo consumo (<3 vezes por semana).

Principais descobertas

Estado de saúde geral

Contrariando expectativas comuns, o participante apresentava excelente estado de saúde. Os exames laboratoriais revelaram apenas cetoacidose e níveis elevados de vitamina B12, mas com níveis normais de colesterol e ausência de deficiências vitamínicas. O monitoramento contínuo da glicose não mostrou anormalidades no metabolismo da glicose.

Composição do microbioma

Surpreendentemente, o microbioma intestinal do carnívoro mostrou características similares aos dos grupos controle. A diversidade alfa e beta não diferiu significativamente dos grupos de comparação, indicando que não houve perda de riqueza ou diversidade microbiana.

O microbioma foi dominado pelo filo Firmicutes (75%), seguido por Bacteroidetes (11%), Proteobacteria e Actinobacteria (cerca de 6,5% cada). No nível de gêneros, predominaram Faecalibacterium, Blautia, Lachnospiraceae não específicas, Bacteroides e Roseburia - bactérias conhecidas pela degradação de fibras.

Funcionalidade microbiana

A análise funcional revelou 190 vias metabólicas preditas, com diferenças sutis mas não dramáticas em comparação aos controles. O carnívoro apresentou escores maiores em módulos relacionados ao metabolismo energético, intolerância à frutose, produção de vitamina K e função de barreira intestinal, mas menores escores na degradação de carboidratos.

Achados inesperados

Diversidade mantida

Contrariamente às expectativas, a diversidade microbiana permaneceu comparável aos omnívoros. O índice de diversidade Shannon foi de 7,91, valor acima da mediana de todos os três grupos controle, mas dentro do intervalo interquartil.

Bactérias degradadoras de fibra

Uma descoberta particularmente intrigante foi a presença abundante de bactérias tradicionalmente associadas à degradação de fibras, apesar da ausência total de fibras na dieta. Isso sugere que estas bactérias podem estar utilizando outros substratos ou que compostos não convencionais na dieta carnívora podem estar atuando como prebióticos.

Menor similaridade com consumidores de carne

Contrariando as hipóteses iniciais, o microbioma do carnívoro mostrou menores semelhanças com o grupo de consumo diário de carne do que com os outros grupos, sugerindo que fatores além do consumo de carne influenciam a composição microbiana.

Possíveis preocupações

Bactérias potencialmente patogênicas

O estudo identificou abundâncias aumentadas dos gêneros Escherichia e Salmonella, que incluem algumas espécies potencialmente patogênicas. Embora estes gêneros contenham diversas espécies com comportamentos distintos, algumas podem contribuir para inflamação crônica e carcinogênese.

Limitações do estudo

Os pesquisadores reconhecem importantes limitações, incluindo o estudo de apenas um indivíduo e um único ponto de coleta. Pesquisas futuras devem incluir maior número de participantes e múltiplas amostras para considerar variações circadianas, sazonais e ambientais.

Implicações para a saúde

Adaptação microbiana

Os resultados sugerem uma notável capacidade de adaptação do microbioma a extremos dietéticos. Isso pode indicar que a interação entre dieta e microbioma é mais complexa do que previamente entendido, sem uma abordagem nutricional única para todos.

Questionamentos sobre prebióticos

O estudo levanta questões importantes sobre quais componentes da dieta carnívora poderiam atuar como prebióticos na ausência de prebióticos derivados de plantas, mantendo a saúde intestinal ao longo do tempo.

Conclusões dos pesquisadores

Com base nos resultados, os pesquisadores concluem que é possível manter um microbioma relativamente diverso e funcional mesmo em extremos dietéticos como a dieta carnívora. As particularidades observadas na composição e funcionalidade não são atribuíveis exclusivamente ao consumo de carne.

Os autores enfatizam que, embora algumas diferenças tenham sido detectadas e a funcionalidade tenha sido ligeiramente comprometida em termos de degradação de carboidratos, as diferenças foram menores que o esperado considerando as restrições dietéticas impostas.

Perspectivas futuras

Esta pesquisa pioneira abre novos questionamentos sobre nossa compreensão do microbioma intestinal. Ainda há muitas questões em aberto no campo do microbioma, e este estudo aparentemente abriu ainda mais questões novas.

Os pesquisadores destacam a necessidade de investigações adicionais para identificar componentes da dieta carnívora que poderiam atuar como prebióticos e determinar se a presença de patógenos potenciais em grande número é uma consequência sistêmica da dieta ou um achado particular do indivíduo estudado.

É importante verificar se o microbioma do carnívoro se adaptou bem às suas escolhas dietéticas, o que seria evidência da presumida alta plasticidade do microbioma, ou se desenvolveu diversidade e funcionalidade forçando suas escolhas alimentares sobre o microbioma intestinal.

Considerações importantes

Este estudo representa um primeiro passo importante na compreensão dos efeitos da dieta carnívora no microbioma intestinal. Entretanto, baseando-se na dieta de um único indivíduo carnívoro em um único ponto de medição, tem limitações significativas e não deve ser generalizado.

Pesquisas futuras devem incluir amostras do microbioma intestinal de um número maior de carnívoros saudáveis e múltiplas amostras de fezes para considerar variações devido a ritmos circadianos, mudanças sazonais e fatores ambientais.

Fonte: https://doi.org/10.1530/MAH-24-0006

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