Havia necessidade de alto teor de carboidratos nas dietas neandertais?

No cenário atual de estudos sobre a alimentação dos hominídeos pré-históricos, uma controvérsia interessante vem ganhando destaque: os Neandertais realmente precisavam consumir uma dieta rica em carboidratos para manter sua saúde, reprodução e desempenho físico? Essa foi a questão abordada no artigo publicado por Rainer J. Klement na American Journal of Biological Anthropology em 2022, que revisita criticamente as hipóteses recentes sobre a dieta desses ancestrais.

Contexto e questionamento da hipótese "glucocêntrica"

Em 2022, Hardy e colaboradores publicaram um estudo sugerindo que os Neandertais precisavam consumir entre 50% e 60% de sua energia diária a partir de carboidratos, baseados em três pilares principais:

  • Relevância universal das diretrizes nutricionais modernas, que indicam cerca de 50% da energia proveniente de carboidratos.
  • Comparação morfológica com atletas contemporâneos, como jogadores de rugby, que demandam dietas ricas em carboidratos.
  • Suposta necessidade fisiológica de glicose para o funcionamento cerebral e para sustentar gravidez e lactação.

Klement propõe que essas interpretações estão fortemente ancoradas em um paradigma "glucocêntrico", típico de sociedades modernas, e que desconsideram a notável flexibilidade metabólica humana — especialmente a capacidade adaptativa à cetose e a dietas hipercarnívoras.

Metabolismo flexível e a dieta hipercarnívora

Diversos dados arqueológicos — como a predominância de ossos de grandes mamíferos em sítios arqueológicos e análises isotópicas — indicam que os Neandertais obtinham grande parte de sua energia de alimentos de origem animal. A interpretação "glucocêntrica" desconsidera que a fisiologia humana é especialmente eficiente na produção e utilização de corpos cetônicos para suprir as necessidades energéticas do cérebro e dos músculos, inclusive em condições de grande demanda física.

Um dos pontos centrais do argumento de Klement é que a exigência de glicose para o cérebro poderia ser facilmente suprida por gliconeogênese e corpos cetônicos em um contexto de dieta predominantemente animal, sem necessidade de grandes quantidades de carboidratos dietéticos. Ele reforça que mesmo atividades físicas intensas podem ser realizadas com eficiência em dietas cetogênicas, desde que haja adaptação metabólica — como mostrado por estudos com atletas de elite e pelo relato de caso de um jogador de rugby acompanhado em sua clínica, que manteve desempenho físico estável em quatro meses consumindo exclusivamente carne.

Gravidez, lactação e alimentação infantil

Outro argumento analisado é a necessidade de carboidratos durante gravidez e lactação. Embora Hardy et al. tenham sugerido uma demanda mínima de glicose de aproximadamente 140 g/dia nesses períodos, Klement ressalta que isso representaria apenas 10% a 15% da energia total de uma mulher lactante — porcentagem muito abaixo dos 50%-60% defendidos.

Além disso, estudos e relatos de casos documentam gestações e lactações bem-sucedidas em mulheres que seguiram dietas com baixos teores de carboidrato, incluindo dietas cetogênicas terapêuticas, sem prejuízo à saúde materno-infantil. Importante notar que a placenta humana tem a capacidade de utilizar e até mesmo sintetizar corpos cetônicos, sugerindo uma adaptação evolutiva para dietas com menor oferta de carboidratos.

Micronutrientes e biodisponibilidade

Outro ponto relevante apontado por Klement diz respeito à qualidade nutricional dos alimentos: nutrientes fundamentais para o desenvolvimento neurológico, como o DHA, estão presentes em maior quantidade e com maior biodisponibilidade em alimentos de origem animal. Ele argumenta que dietas baseadas em plantas poderiam, inclusive, aumentar as demandas por nutrientes como vitamina C, devido à competição metabólica com a glicose, algo irrelevante em dietas de baixo carboidrato.

Além disso, plantas disponíveis no ambiente pleistocênico poderiam conter fatores antinutricionais, reduzindo ainda mais a eficiência da absorção de micronutrientes.

Considerações finais

Ao analisar criticamente os argumentos de Hardy e colegas, Klement conclui que a ideia de uma obrigatoriedade fisiológica para dietas ricas em carboidratos entre os Neandertais não encontra apoio sólido nem em dados fisiológicos, nem em evidências arqueológicas. Pelo contrário, tudo indica que os Neandertais, provavelmente, possuíam adaptações fisiológicas que lhes permitiam prosperar com dietas hipercarnívoras, com baixos teores de carboidrato.

Essa análise reforça a importância de questionar pressupostos modernos e considerar as adaptações evolutivas humanas em contextos pré-históricos, sem projetar sobre eles as recomendações dietéticas contemporâneas, muitas vezes influenciadas por interesses industriais e por evidências de qualidade questionável.

Em suma, a fisiologia humana oferece extraordinária flexibilidade e capacidade de adaptação ao consumo reduzido de carboidratos — algo que pode ter sido um traço distintivo e vantajoso no sucesso evolutivo dos Neandertais.

Fonte: https://doi.org/10.1002/ajpa.24643

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