Os carboidratos dos alimentos de origem animal poderiam ter sustentado uma dieta equilibrada para os neandertais?

A dieta dos neandertais é um dos temas mais debatidos na paleoantropologia e na arqueologia nutricional. Por muito tempo, a hipótese predominante defendia que, apesar de sua forte dependência de alimentos animais, os neandertais teriam necessitado complementar sua alimentação com plantas para suprir as necessidades de carboidratos disponíveis (ACH – available carbohydrates), fundamentais para o funcionamento adequado do organismo, principalmente para mulheres grávidas e em fase de lactação.

Entretanto, uma análise mais recente e detalhada, publicada no Journal of Archaeological Science em 2022 por José Luis Guil-Guerrero, propõe uma perspectiva inovadora sobre esse tema: seria possível que os neandertais tivessem suprido suas eventuais demandas por carboidratos exclusivamente a partir de tecidos e órgãos animais?

Limites fisiológicos e contextos climáticos

O ponto de partida dessa análise é o reconhecimento de que seres humanos não podem sobreviver saudavelmente com dietas compostas por mais de aproximadamente 40% de proteína. Essa limitação fisiológica obriga qualquer dieta predominantemente carnívora a contar com fontes alternativas de energia, tradicionalmente atribuídas à gordura e, supostamente, a carboidratos vegetais.

Contudo, a disponibilidade de vegetais variava amplamente no Paleolítico, em função das transições climáticas bruscas características do Oxygen Isotope Stage 3 (OIS 3), período no qual os neandertais desapareceram. Enquanto eventos mais quentes (Dansgaard–Oeschger) favoreciam a presença de plantas, os períodos frios (Heinrich events) restringiam drasticamente seu acesso. Portanto, essa variabilidade sazonal e geográfica levanta a questão: como populações neandertais se adaptaram nutricionalmente em cenários onde plantas eram escassas ou inexistentes?

Fontes animais de carboidratos: músculos e órgãos

Conforme detalhado no estudo, mesmo após o rigor mortis — quando parte do glicogênio muscular é convertida em ácido lático — quantidades apreciáveis de glicogênio permaneciam nos músculos dos animais selvagens caçados pelos neandertais. Por exemplo, bisões analisados mostraram conteúdos de até 3,56 g de ACH por 100 g de carne 24 horas após o abate.

A importância dos órgãos viscerais se destaca ainda mais: fígado, intestinos, estômago e até cérebro contêm concentrações expressivas de carboidratos disponíveis. O fígado de renas, por exemplo, contém cerca de 6,8 g de ACH por 100 g de peso fresco, permitindo um consumo significativamente maior de ACH do que o músculo esquelético, dado o menor teor proteico desses órgãos.

O intestino de bovinos apresenta até 24,1 g de ACH por 100 g de peso seco, valores comparáveis às folhas de plantas consumidas tradicionalmente por humanos. Além disso, as práticas de conservação da carne e órgãos imediatamente após a caça — semelhantes às observadas entre populações indígenas do Ártico, como os Inuit — poderiam ter permitido a preservação de glicogênio e sua absorção eficiente.

Mastigação e extração de glicogênio

O autor também destaca um comportamento cultural potencialmente relevante: a mastigação prolongada de peles e vísceras durante o preparo de roupas e utensílios. A saliva humana contém α-amilase, enzima capaz de hidrolisar o glicogênio, permitindo sua digestão mesmo sem a deglutição completa dos tecidos mastigados. Essa prática teria sido particularmente relevante para mulheres neandertais, que desempenhavam papéis centrais no processamento de peles e possivelmente obtinham aporte adicional de glicogênio nesse contexto.

Adaptação metabólica

A comparação com os Inuítes modernos — que subsistem tradicionalmente com dietas extremamente pobres em carboidratos vegetais — é instrutiva. Os Inuítes possuem uma mutação no gene CPT1A, que favorece adaptações ao metabolismo de alta ingestão de gordura e baixa ingestão de ACH, condição que, segundo o estudo, pode ter um paralelo funcional com adaptações específicas dos neandertais a ambientes glaciais.

Embora não haja evidência direta de que os neandertais apresentassem a mesma mutação, eles poderiam ter exibido adaptações próprias, como um aumento da capacidade de gliconeogênese hepática. Sugere-se ainda que sua anatomia, como um tórax largo e robusto, poderia estar relacionada a um fígado de maior tamanho funcional, permitindo melhor processamento de dietas ricas em proteína e gorduras com pouco carboidrato.

Considerações finais

O estudo conclui que, mesmo que os carboidratos não sejam considerados nutrientes essenciais para a saúde humana — pois o corpo é capaz de sintetizar glicose endogenamente —, as vísceras e músculos de grandes mamíferos teriam suprido eventuais necessidades de ACH dos neandertais, possibilitando a manutenção de dietas predominantemente carnívoras em ambientes onde plantas eram escassas ou indisponíveis.

Além disso, práticas comportamentais específicas, como o consumo imediato de órgãos após o abate e o aproveitamento de resíduos durante a confecção de artefatos, teriam potencializado a extração de nutrientes como o glicogênio. Portanto, ainda que o consumo de vegetais tenha ocorrido em alguns contextos, não há evidência de que ele tenha sido biologicamente imprescindível para a sobrevivência neandertal.

Este trabalho contribui para um entendimento mais amplo da flexibilidade dietética de Homo neanderthalensis, reforçando a ideia de que adaptações culturais e biológicas permitiram a ocupação de nichos ecológicos extremos, como os ambientes glaciais da Eurásia.

Fonte: https://doi.org/10.1016/j.jas.2022.105664

Postagem Anterior Próxima Postagem
Rating: 5 Postado por: