O comportamento humano se diferencia dos outros primatas por vários aspectos únicos, e um dos mais marcantes é a exploração regular de animais de porte igual ou superior ao próprio corpo. Essa prática — denominada “padrão predatório humano” (HPP, do inglês Human Predatory Pattern) — teria desempenhado papel central na evolução de características biológicas e comportamentais de nossa linhagem, incluindo aumento do tamanho cerebral, alterações dentárias e adaptações para o bipedalismo terrestre.
A redefinição do conceito de "carnivoria humana"
Historicamente, os paleoantropólogos interpretaram o surgimento do uso de ferramentas líticas afiadas e o consumo de carne como comportamentos interligados, assumindo que o uso de lâminas de pedra teria surgido para permitir o corte e aproveitamento da carne animal. Contudo, Thompson e colaboradores (2019) questionam essa narrativa simplificada e propõem uma separação conceitual: o consumo de nutrientes “externos ao osso” (principalmente proteínas da carne) exige técnicas diferentes da exploração dos nutrientes “internos ao osso” (marrow e cérebro, ricos em gordura), tanto do ponto de vista tecnológico quanto ecológico.
Essa distinção é crucial porque dentro dos ossos dos animais encontram-se fontes de gordura com alta densidade energética e valor biológico essencial (como ácidos graxos de cadeia longa importantes para o desenvolvimento cerebral), que podem persistir após a decomposição da carne e apresentam menor risco de contaminação bacteriana. Assim, os autores sugerem que os primeiros hominídeos priorizavam a extração de nutrientes dentro do osso por meio da percussão — quebrando ossos para acessar o tutano — antes mesmo da adoção regular de instrumentos de corte.
A importância ecológica e evolutiva da extração percussiva
Enquanto chimpanzés e bonobos caçam presas menores e dificilmente se arriscam a explorar carcaças maiores ou realizar escavações ósseas, os primeiros hominídeos desenvolveram comportamento inovador ao buscar nutrientes remanescentes em carcaças deixadas por grandes predadores. Essa prática teria surgido no final do Plioceno (cerca de 3,4 milhões de anos atrás), em um período de grande variação climática e expansão de ambientes abertos na África, favorecendo uma dieta mais diversificada e estratégias oportunistas de forrageio.
Essa transição comportamental implicou novos desafios e riscos, como o aumento da exposição a carnívoros de grande porte e a necessidade de deslocamentos em grupo. Porém, hominídeos que investiram no uso de objetos contundentes — pedras ou materiais perecíveis — para quebrar ossos, encontraram uma fonte estável e energética de alimento que era menos disputada e permanecia acessível por mais tempo do que a carne exposta.
Evidências arqueológicas e o papel das mulheres
A evidência arqueológica mais antiga de butchery — marcas de corte e fratura intencional de ossos — remonta a cerca de 3,4 milhões de anos (DIK-55, Etiópia). Ainda que controversas, essas marcas são significativamente diferentes das produzidas por dentes de crocodilos ou pisoteio e poderiam representar o primeiro registro desse comportamento inovador. Thompson e colegas argumentam que a maioria das investigações arqueológicas permanece excessivamente focada na busca por lascas de pedra e marcas de corte, negligenciando as evidências menos visíveis de percussão óssea.
Outro aspecto notável levantado pelos autores é que a exploração percussiva poderia ter envolvido fortemente as fêmeas e jovens hominídeos, em paralelo ao padrão observado em chimpanzés atuais, em que o uso de ferramentas está mais associado a esses grupos do que aos machos adultos, tradicionalmente ligados à caça ativa. Assim, mulheres e juvenis poderiam ter sido pioneiros na adoção e transmissão desse conhecimento técnico.
Desafios metodológicos e caminhos para a pesquisa futura
O artigo destaca ainda as dificuldades em reconhecer vestígios arqueológicos desse comportamento inicial: marcas de percussão podem ser sutis e facilmente confundidas com outros processos naturais, e ferramentas utilizadas (como madeiras ou pedras não trabalhadas) tendem a não se conservar ou são difíceis de identificar como artefatos. Para superar essas limitações, os autores sugerem novos protocolos de escavação e análise, incluindo varreduras sistemáticas de depósitos pliocênicos e uso de técnicas avançadas (como modelagem tridimensional e inferência bayesiana) para diferenciar traços de origem antropogênica.
Conclusão: um novo paradigma sobre a origem do HPP
Em suma, a proposta central de Thompson e colaboradores aponta para uma origem gradual e desvinculada entre a adoção de ferramentas líticas afiadas e a exploração de recursos animais. Antes da regularidade do corte de carne, os hominídeos teriam desenvolvido uma tradição tecnológica baseada na percussão para acessar os ricos depósitos de gordura escondidos no interior de ossos grandes. Esse padrão predatório singular teria lançado as bases ecológicas, energéticas e sociais para os eventos subsequentes na evolução humana.
Esse novo modelo demanda que a paleoantropologia não se limite a paradigmas construídos sobre analogias com chimpanzés ou inferências lineares entre "uso de ferramenta = corte de carne". Em vez disso, propõe uma visão mais ampla e integrada do comportamento dos primeiros hominídeos, considerando as diferentes pressões ecológicas, capacidades cognitivas e soluções tecnológicas disponíveis.
