Os seres humanos se destacam de outros primatas por sua dieta, fisiologia e comportamento social. Essa singularidade evolutiva começou há cerca de dois milhões de anos, coincidindo com eventos marcantes como a encefalização (aumento do tamanho relativo do cérebro), a redução do aparato dentário e a adoção de um estilo de vida terrestre completo. Durante este período, evidências arqueológicas indicam que os hominídeos passaram a incluir a carne de forma regular em sua dieta — uma mudança que teve repercussões profundas para sua anatomia, fisiologia e organização social.
Por muito tempo, alguns estudiosos propuseram que esses hominídeos teriam adquirido carne de maneira oportunista, principalmente através da cleptoparasitismo — comportamento em que roubariam carcaças de predadores como felinos. No entanto, esta nova pesquisa, publicada em Scientific Reports, oferece evidências robustas contrárias a essa hipótese.
Evidências de acesso primário às carcaças
Os autores do estudo analisaram minuciosamente os padrões de marcas de corte em ossos encontrados em sítios arqueológicos renomados da Garganta de Olduvai, na Tanzânia (FLK Zinj, DS e PTK, datados de aproximadamente 1,84 milhão de anos). Usando métodos avançados de análise, incluindo algoritmos de aprendizado de máquina e inteligência artificial, os pesquisadores compararam esses padrões arqueológicos com os padrões obtidos experimentalmente de carcaças completamente inteiras e carcaças previamente consumidas por leões.
Os resultados mostraram, de forma consistente, que os padrões anatômicos das marcas de corte presentes nos sítios arqueológicos são compatíveis com o processamento de carcaças completas, e não com o consumo de sobras deixadas por predadores. Isso indica que os hominídeos não dependiam de felinos para obter carne: eles próprios caçavam e tinham acesso primário aos animais, incluindo presas de pequeno e médio porte, com até 350 kg.
Impactos na anatomia e fisiologia humana
Essa prática regular de caça teria exigido comportamentos cooperativos e partilha de alimento, promovendo laços sociais complexos e moldando a estrutura social desses grupos humanos ancestrais. A ingestão regular de carne teria proporcionado uma dieta de alta qualidade energética, permitindo a liberação de pressões seletivas sobre os dentes (pela menor necessidade de mastigação intensa de vegetais fibrosos) e favorecendo a alocação de energia metabólica para o crescimento cerebral — aspectos fundamentais no surgimento do gênero Homo.
Além disso, adaptações anatômicas observadas em Homo erectus, como membros longos, peito em forma de barril e a presença de ligamento nucal, sugerem que o corpo desses hominídeos estava adaptado para corrida de resistência — uma habilidade crucial para estratégias de caça em ambientes abertos como as savanas africanas. Essa hipótese se reforça ao observarmos que Homo erectus também apresenta características anatômicas que favorecem o arremesso eficiente, habilidade potencialmente importante para a caça à distância.
Relevância ecológica
A adoção do carnivorismo também teria impactos ecológicos significativos. A competição com outros grandes carnívoros por presas teria contribuído para o declínio da diversidade de predadores no leste da África, uma tendência que coincide com o aumento do tamanho cerebral e corporal dos hominídeos a partir de cerca de 2 milhões de anos atrás.
O estudo argumenta que a cleptoparasitismo não poderia ter sido uma estratégia sustentável para os hominídeos: além de arriscada, essa prática exigiria habilidades que eles não possuíam, como a capacidade de monitorar vastas áreas, algo que aves como abutres conseguem realizar. O predador terrestre mais eficiente para obter carcaças frescas era, de fato, o próprio hominídeo.
Conclusões
A conclusão principal do estudo é que os hominídeos faunívoros do início do Pleistoceno ocupavam plenamente o nicho ecológico dos carnívoros e se comportavam como predadores ativos. Essa mudança de dieta e comportamento teria sido central no processo evolutivo que moldou as características anatômicas e sociais humanas.
Portanto, ao contrário da visão tradicional que enxergava nossos ancestrais como meros oportunistas dependentes de sobras de felinos, a evidência mostra que a carne era parte fundamental de sua dieta e que a caça foi uma força propulsora na trajetória evolutiva que culminou na emergência de nossa espécie.
