De volta ao mundo de Epicteto.


Ao ter seu avião abatido e descer de paraquedas no território inimigo, o piloto americano James Stockdale pensou: “Estou deixando o mundo da tecnologia e entrando no mundo de Epicteto”.

Algo parecido está acontecendo com todo o mundo, devido ao coronavírus.

Artigo de Aldo Dinucci,

O almirante norte-americano James Bond Stockdale conheceu a obra de Epicteto ao fazer um pós-doutorado em Stanford. Como piloto de caças, simplesmente decorou o Manual de Epicteto, como é costume dos pilotos, que decoram manuais de instruções sobre os jatos que pilotam. Alguns tempos depois, na guerra do Vietnã, seu caça foi abatido. Stockdale assim descreve o que pensou ao ser ejetado da aeronave e abrir o paraquedas:

Em 9 de setembro de 1965, voei a quinhentos nós direto para uma armadilha de fogo antiaéreo, em um pequeno avião A4 – as paredes da cabine não distavam sequer noventa centímetros uma da outra – que eu não conseguia mais controlar depois que irrompeu em chamas e seus sistemas se apagaram. Após a ejeção eu tinha cerca de 30 segundos para fazer minha última declaração em liberdade, antes de cair na rua principal de uma pequena aldeia à frente. Que então me resgatem, e murmurei para mim mesmo: “Cinco anos aqui, pelo menos. Estou deixando o mundo da tecnologia e entrando no mundo de Epicteto”. (Stockdale, Coragem sob fog, Tradução Aldo Dinucci e Joelson Nascimento. EdiUFS, 2010, página 13)

Stockdale abandonava um mundo no qual ele era um respeitado piloto e oficial de patente, um mundo no qual tinha casa, mulher e filhos, para adentrar em mundo no qual era um pária, um prisioneiro de guerra em Hanói, vivendo miseravelmente, e por vezes na solitária, por cerca de sete anos e meio. Além disso, teve uma fratura num dos joelhos que não foi tratada, o que fez com que ele ficasse manco. Stockdale percebeu, na própria carne, que essas coisas que temos em alta conta, nosso status, nossa carreira, nossa saúde, nossa família, nossa vida, são partes de um cenário, cuja estabilidade (e realidade) é apenas aparente. A verdade básica que os estoicos tomaram de Heráclito, Tudo flui, significa, vocês sabem, que nada permanece, que tudo está sempre em mudança. Impérios, como o romano, surgem e depois desaparecem, deixando para trás de si na mais que ruínas. Para quase a totalidade de nós, a mudança é mais drástica. Ora somos crianças. Depois já a velhice se insinua. E logo somos apenas uma foto envelhecida num álbum esquecido ou um nome num registro empoeirado, que depressa virará pó também.

E não temos nenhum controle sobre a escalada dos acontecimentos. As coisas simplesmente acontecem, e o fluxo nos arrasta. Uma das lições mais duras, ao envelhecer, é perceber que o mundo que nos cerca morre antes de nós. Casas que conhecíamos são demolidas. Florestas onde íamos são devastadas. Lojas e restaurantes que frequentávamos fecham. Artistas que amávamos morrem. E fenecem sucessiva ou alternadamente nossos avós e pais, ou então nossos próprios irmãos e filhos nos precedem na morte. E pouco a pouco vivemos num mundo que não mais é mais o nosso, num mundo estranho que não mais reconhecemos.

De certa forma, a crise pela qual passamos desnuda essa realidade. Sempre vivemos no mundo de Epicteto, na verdade, mas nos iludíamos com a aparência de estabilidade. Mas agora não podemos mais ignorar: podemos morrer, nós e nossos entes queridos, amanhã; ditaduras podem destruir a frágil democracia construída por décadas. Os cenários vão sendo trocados com rapidez surpreendente. E pouco nos cabe senão cumprir o papel que nos foi dado, se pai, o de pai; se filho, o de filho, se cidadão, o de cidadão.

A vida, afinal, é algo emprestado, e será retomada mais cedo ou mais tarde, ou por meio de morte natural e pacífica, ou por meio de um tumor doloroso, ou por meio de um tiro ou um acidente. Não importa como, mas será retomada. Cumprir nosso papel da maneira melhor possível, da maneira mais digna possível, é o que nos resta. E sermos gratos, pois há beleza na vida, apesar de todo sofrimento, toda injustiça e toda dor, e viver belamente é o que podemos ansiar:

Lembra que és um ator no drama teatral que o Dramaturgo escolher. Se Ele o quiser breve, breve será o drama, se longo, longo; se quiser que cumpras o papel de mendigo, cumpre também este papel de modo digno. E, da mesma forma, se coxo, se magistrado, se simples cidadão. Pois isto é teu: encenar belamente o papel que te é oferecido. Mas cabe a outro escolhê-lo. (Epicteto, Manual de Epicteto, capítulo 17, Tradução de Aldo Dinucci)

Fonte: https://bit.ly/2STpjGq

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