Durante o período do Pleistoceno Superior, Neandertais e humanos modernos coexistiram na Europa por um breve intervalo antes da extinção dos primeiros, evento que ainda hoje suscita grande interesse científico. Em um estudo inovador publicado na Scientific Reports em 2019, uma equipe internacional liderada por Christoph Wißing analisou os padrões alimentares e de mobilidade desses grupos humanos usando isótopos estáveis, fornecendo uma nova perspectiva sobre seu comportamento ecológico e possíveis razões para o sucesso dos humanos modernos (Homo sapiens) em detrimento dos Neandertais.
Contexto e objetivos do estudo
A convivência entre Neandertais e humanos modernos ocorreu entre aproximadamente 45.000 e 35.000 anos antes do presente. As diferenças nos nichos ecológicos ocupados por esses grupos foram frequentemente apontadas como um fator determinante para o desaparecimento dos Neandertais. Hipóteses anteriores sugeriam que humanos modernos teriam explorado uma dieta mais ampla, incluindo recursos aquáticos, enquanto Neandertais seriam especialistas na caça de grandes herbívoros terrestres.
O estudo de Wißing e colegas procurou testar essa hipótese de forma mais robusta, analisando amostras ósseas bem preservadas de dois sítios-chave da Bélgica — a Troisième caverne de Goyet e a caverna de Spy — locais que preservam restos de ambos os grupos humanos e de sua fauna contemporânea.
Metodologia baseada em isótopos estáveis
Foram utilizados isótopos estáveis de carbono (δ¹³C) e nitrogênio (δ¹⁵N), que permitem inferir a origem e a natureza da dieta protéica consumida, além de isótopos de enxofre (δ³⁴S), úteis para rastrear padrões de mobilidade e proveniência geográfica. O estudo incluiu análises detalhadas da colágeno ósseo de 2 indivíduos humanos modernos e 18 Neandertais, além de numerosos animais herbívoros e carnívoros que compunham o ecossistema da época.
Principais resultados sobre dieta
A análise isotópica revelou que, ao contrário de interpretações anteriores, Neandertais e humanos modernos apresentavam dietas bastante semelhantes, compostas quase exclusivamente por carne de grandes herbívoros terrestres — especialmente mamutes e renas. Para ambos os grupos, esses animais representaram cerca de 25% a 30% da fonte protéica total, sem evidências relevantes de consumo de recursos aquáticos como peixe.
Portanto, a hipótese de que humanos modernos teriam vantagem adaptativa por consumir mais recursos aquáticos não encontra respaldo direto nesses dados. Ambos dependiam fortemente de grandes presas terrestres.
Padrões de mobilidade e impacto ecológico
Embora a dieta fosse similar, as diferenças apareceram nos padrões de mobilidade. Os isótopos de enxofre indicaram que os Neandertais de Spy tinham hábitos mais locais, permanecendo no ecossistema imediato, enquanto os Neandertais de Goyet possuíam valores isotópicos que sugerem origem em outra região — possível evidência de migração ou deslocamento antes da morte.
Além disso, os restos ósseos dos Neandertais de Goyet mostraram marcas claras de canibalismo, uma característica ausente nos indivíduos de Spy, levantando hipóteses sobre conflitos intergrupais ou práticas rituais.
Outro aspecto notável foi a diferença no impacto ecológico: humanos modernos aparentavam exercer pressão predatória mais intensa sobre populações de mamutes, o que pode ter contribuído para alterações na estrutura do ecossistema, permitindo, por exemplo, a expansão de cavalos em nichos antes ocupados por mamutes.
Implicações para a extinção dos Neandertais
Os resultados indicam que a flexibilidade dietética não foi um fator decisivo para a substituição dos Neandertais. Em vez disso, aspectos comportamentais e sociais, como estratégias mais eficientes de uso da paisagem e maior mobilidade entre territórios, podem ter proporcionado vantagem competitiva aos humanos modernos.
Além disso, a maior densidade populacional estimada para humanos modernos pode ter aumentado a pressão sobre os recursos, acelerando mudanças ecológicas que desfavoreceram os Neandertais.
Conclusão
O estudo mostra que, no que diz respeito à dieta, Neandertais e humanos modernos compartilhavam práticas muito semelhantes: caça predominante de grandes mamíferos terrestres. As principais diferenças residiam no comportamento espacial e na exploração intensiva dos recursos pelos humanos modernos, fatores que podem ter sido determinantes na transição ecológica e populacional que culminou na extinção dos Neandertais.
Essa pesquisa exemplifica como métodos de análise sofisticados — como o uso de isótopos estáveis — permitem reconstituir de forma precisa aspectos da ecologia humana pré-histórica, desafiando hipóteses anteriores e enriquecendo nossa compreensão sobre as origens e adaptações da nossa espécie.
