A chamada “fome de coelho”, também conhecida como rabbit starvation ou “intoxicação por proteína magra”, é um fenômeno bem documentado em relatos históricos, estudos clínicos e análises fisiológicas. O nome se originou da experiência de exploradores que, ao tentar sobreviver apenas com carne magra de animais selvagens, como coelhos no inverno, passaram a sofrer de mal-estar, náusea, diarreia persistente, fraqueza e sensação de fome contínua, mesmo comendo grandes quantidades de carne. Esses sintomas apareciam porque, sem gordura suficiente, o corpo era forçado a depender quase exclusivamente da proteína como fonte de energia, o que sobrecarregava a capacidade do fígado de transformar os aminoácidos em ureia para excreção.
O estudo clássico de Walter McClellan e Eugene Du Bois (1930), conduzido no Bellevue Hospital de Nova York, deu a comprovação científica desse quadro. Dois voluntários, entre eles o famoso explorador Vilhjalmur Stefansson, viveram um ano inteiro alimentando-se apenas de carne. No início, Stefansson foi colocado em uma dieta quase só de carne magra, sem gordura suficiente. Em apenas três dias surgiram náusea, diarreia e mal-estar abdominal. Quando os pesquisadores corrigiram o cardápio, adicionando cortes gordurosos, cérebro e medula óssea, os sintomas desapareceram em dois dias. A partir daí, durante todo o restante do ano, os dois homens permaneceram saudáveis, sem sinais de deficiência de vitaminas, problemas renais ou perda de energia, desde que houvesse equilíbrio entre proteína e gordura (McClellan & Du Bois, 1930).
Esse resultado confirma algo que povos tradicionais já sabiam na prática. Entre os Inuítes, esquimós da Groenlândia, caçadores das planícies norte-americanas e outras populações tradicionais, sempre houve o hábito de valorizar a gordura animal. Esses povos consumiam não apenas a carne, mas também as vísceras ricas em gordura, a medula dos ossos, o cérebro e as camadas adiposas dos animais. Em épocas de escassez, acumulavam gordura derretida para usar como reserva. Isso não era acaso: era a forma de evitar os sintomas da “fome de coelho” e de garantir energia suficiente em ambientes onde praticamente não havia carboidratos disponíveis.
Do ponto de vista científico, há uma explicação clara. O corpo humano tem um limite de ureagênese, ou seja, um limite de quanto nitrogênio consegue converter em ureia para eliminar pela urina. Esse teto impede que quantidades muito altas de proteína sejam processadas de forma segura. Pesquisas modernas mostraram que, quando a proteína ultrapassa cerca de 35 a 40% das calorias totais, surgem sinais de sobrecarga: náusea, diarreia, fadiga, dor de cabeça e perda de apetite. Em condições extremas, a continuidade desse padrão pode levar até à morte. Essa intolerância ao excesso proteico é mais pronunciada em crianças, gestantes e lactantes, que precisam de energia densa em gordura para sustentar crescimento e reprodução (Rudman et al., 1973; Bilsborough & Mann, 2006; Tushingham et al., 2021).
Por isso, sociedades tradicionais desenvolveram estratégias culturais específicas para evitar o excesso de proteína magra. Caçadores nativos da América do Norte, por exemplo, consideravam perigoso depender apenas de carne de coelho ou outros animais magros durante o inverno, sabendo que isso provocava fraqueza e adoecimento. Já entre os inuítes, o consumo de gordura de foca, baleia e peixe gordo era essencial para manter a saúde em um ambiente com baixíssimo acesso a vegetais ou carboidratos. Esses costumes refletem a mesma lógica observada nos experimentos clínicos do século XX: sem gordura suficiente, a proteína em excesso torna-se tóxica.
Em resumo, a dieta carnívora não é sinônimo de proteína em excesso. A experiência clínica de um ano, as observações históricas e os dados fisiológicos modernos convergem para a mesma conclusão: o ser humano só consegue viver exclusivamente de carne quando a maior parte da energia vem da gordura, e não da proteína. A proteína deve ser suficiente para a manutenção dos tecidos, mas não pode ultrapassar o limite de tolerância metabólica. A gordura é o combustível que garante energia estável, evita intoxicação e permite que a dieta seja sustentável a longo prazo.
Assim, toda dieta baseada exclusivamente em produtos de origem animal deve ser formulada de forma que a gordura seja o componente energético predominante, respeitando a necessidade fisiológica do corpo e evitando o quadro perigoso da “fome de coelho”.
