A hiponatremia associada ao exercício (HAE) é uma queda da concentração de sódio no sangue que pode ocorrer durante ou após esforços físicos. Por muito tempo, imaginou-se que fosse um problema restrito a provas extremas, como ultramaratonas e Ironman. Hoje sabe-se que a HAE também aparece em esportes coletivos e eventos de menor duração. Segundo a revisão publicada no Journal of Endocrinological Investigation, a HAE é subestimada e potencialmente fatal quando não reconhecida e tratada a tempo.
Por que acontece: o mecanismo central
A peça-chave é a diluição do sódio plasmático provocada por ingestão excessiva de líquidos (água ou bebidas esportivas hipotônicas) aliada à secreção não osmótica de vasopressina (AVP), hormônio que reduz a eliminação de água pelos rins. O exercício, a dor, a náusea e até hipoglicemia podem estimular AVP, mantendo água no organismo mesmo quando o plasma já está diluído. O resultado é retenção hídrica além do necessário e queda do sódio sérico. O papel da perda de sódio pelo suor existe, mas é menos determinante do que a sobrecarga hídrica, e a evidência de que suplementação salina previna HAE é inconsistente.
Outro ponto relevante é a interleucina-6 (IL-6), citocina que sobe com o exercício e se correlaciona com AVP, reforçando a retenção hídrica. Há ainda fatores adicionais: liberação de água endógena ao se metabolizar glicogênio; ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona e do simpático; e a existência de um “estoque” de sódio em ossos, pele e cartilagens, que pode tamponar ou, se indisponível, agravar a hyponatremia. Tudo isso compõe uma fisiopatologia multifatorial cujo denominador comum é excesso de água frente à capacidade renal de excretá-la.
Quem corre mais risco
- Ingestão acima da sede e ganho de peso durante a prova (marcador de sobre-hidratação).
- Provas prolongadas (geralmente >2 h) e temperaturas ambientais mais altas.
- Inexperiência no evento e estratégias de hidratação rígidas (“beber X mL por hora” sem ouvir a sede).
- Em algumas análises, mulheres menstruadas podem estar em risco devido a efeitos de estrogênio na adaptação cerebral ao edema osmótico; porém, quando se ajusta por IMC e tempo de prova, essa diferença pode desaparecer.
Como se manifesta: do discreto ao grave
Os sintomas decorrem do aumento da pressão intracraniana por edema celular. Há um espectro:
- Leve/moderado: sensação de estufamento, náusea, vômitos, cefaleia, tontura, alteração discreta do estado mental.
- Grave (encefalopatia hiponatrêmica): confusão importante, posturas de descerebração, desconforto respiratório por edema pulmonar, coma e morte.
O desafio clínico é diferenciar HAE de hipoglicemia, hipotensão ortostática, síncope vasovagal, exaustão/insolação e outras condições do esforço. Sinais como ausência de sede, inchaço e história de ingestão exagerada de líquidos aumentam a suspeita de HAE. Idealmente, mede-se o sódio sérico em testes point-of-care para orientar a conduta.
Diagnóstico e avaliação inicial
O atendimento segue o ABCDE (vias aéreas, respiração, circulação, consciência, exposição), com verificação de temperatura retal e glicemia capilar para excluir outras causas. Quando possível, avalia-se o estado de volume extracelular:
- Euvolemia/hipervolemia: ganho de peso, ureia baixa, sódio urinário >30 mmol/L.
- Hipovolemia: perda de peso, ureia elevada, sódio urinário <30 mmol/L.
Na prática de prova, a distinção é difícil; por isso, o histórico de sobre-hidratação e a dosagem de sódio são decisivos.
Tratamento: ajuste à gravidade
- Formas graves com encefalopatia e/ou edema pulmonar: salina hipertônica 3% IV em bolus, repetível até três vezes, monitorando melhora neurológica.
- Formas leves/moderadas: restrição hídrica e, quando tolerado, solução hipertônica por via oral como alternativa à infusão IV; ambas mostraram eficácia semelhante na correção inicial do sódio.
- Assintomática: em geral, restrição de líquidos é suficiente.
Mesmo em HAE (quase sempre aguda, <48 h), deve-se monitorar a correção do sódio para evitar desmielinização osmótica; diretrizes europeias recomendam limite de ≤10 mmol/L nas primeiras 24 h.
Prevenção: “beber conforme a sede”
A estratégia mais segura e efetiva é hidratar-se guiado pela sede antes, durante e após o exercício. Não há “quantia universal” por hora, pois a sudorese e a excreção renal variam entre atletas e condições. Evidências prospectivas mostram que “beber antecipando a sede” favorece o excesso de líquido e não reduz cãibras, fadiga ou golpes de calor; modesta desidratação é tolerada na maioria dos casos.
Pontos práticos:
- Evitar metas rígidas de ingestão (“X mL/h”) sem feedback da sede.
- Entender que bebidas esportivas são, em geral, hipotônicas: a grande ingesta anula o pequeno teor de sódio; suplementação de sódio não mostrou prevenir HAE de forma consistente.
- Pesar-se pode ajudar a detectar ganho de peso (sinal de sobre-hidratação), mas o corpo regula sódio plasmático, não peso.
- Menos postos de hidratação em percursos e educação pré-prova (atletas e equipes) reduziram HAE em eventos específicos.
Mensagem-chave para atletas, treinadores e equipes médicas
- HAE é prevenível: priorizar sede como guia e evitar orientações genéricas que incentivem “beber o máximo possível”.
- Reconhecer cedo: náusea, cefaleia, confusão e inchaço em contexto de alto consumo de líquidos exigem atenção e dosagem rápida de sódio.
- Tratar conforme a gravidade: salina hipertônica 3% salva vidas nas formas graves; em quadros leves, restrição e/ou solução hipertônica oral podem resolver.
- Educação é essencial: comunicados oficiais de prova, briefings e materiais educativos devem alinhar mensagens à evidência atual.
O que este consenso de evidências muda na prática
A revisão sintetiza dados de incidência, fatores de risco, fisiopatologia e manejo, derrubando mitos antigos de hidratação “preventiva” e reforçando que o excesso de água — e não a falta de sal — é o eixo do problema na maioria dos casos. Para quem organiza, orienta ou participa de eventos esportivos, a recomendação é simples e altamente aplicável: beba quando tiver sede e monitore sinais, evitando estratégias que empurrem o atleta a ultrapassar seu próprio controle fisiológico.
Fonte: https://doi.org/10.1007/s40618-025-02673-7
